17/09/2015

No rasto de Fernão Mendes Pinto – IV

Crónica Quarta

No dia 31 de Agosto, segunda-feira, partimos manhã cedo, em carroça, para Thanlyin (a feitoria dos portugueses no Sirião, onde, no meu século XVII, se instalou Filipe de Brito e Nicote (c. 1566-1613), achando-se já em 1590 na região como comerciante de sal e tendo depois ficado ao serviço do rei de Arracão (que, nos vossos dias, se denomina Rackine e cuja capital é Mrauk-u), a quem serviu bem e lealmente, trazendo bem-estar ao povo. 

Depois de muitas lutas e rivalidades entre os senhores da guerra, foi proclamado rei do Pegu ou de Sirião (Thanlyin), conhecido como Nga Zingar, após ter tomado a cidade, com o apoio dos naturais que lhe chamavam Changá ou Homem Bom. Com a tomada da praça pelos bramás, em 1613, Filipe de Brito foi empalado e degolado. 

Neste vosso futuro, que me é dado ver por ter encarnado num dos seguidores da embaixada, a igreja portuguesa há muito deixou de existir, as três paredes que vimos (umas tristes ruínas abandonadas na floresta e que os naturais desconhecem) são de construção italiana em tijolo, de meados do século XVIII, que pouco ou nada tem a vr com a nossa herança e património. Vale a placa, enquanto memória «Antiga Igreja portuguesa / Era cristã (1749-1750) e dois túmulos de luso-descendentes da mesma época.
As relações com Pegu estabeleceram-se após a tomada de Malaca, por Afonso de Albuquerque, que tratou imediatamente de enviar embaixadores a estes reinos, assim como à China. Destes primeiros encontros chegou notícia a Portugal.
 
Carta de Garcia de Sá (?) a El-Rei D. Manuel:


(…) “O ano passado foi daqui por mandado do capitão-mor Francisco Lampreia e Jorge de Pina a Pegu por embaixadores, e depois partiu daqui António Correia na [nau] Brandoa para Malaca e de lá havia d’ir a Pegu, onde foi e se acharam lá todos, donde vieram desavindos e mal aviados com a gente da terra, e assi [com] guzarates que lá estavam com suas naus. Dizem ser terra muito rica e abastada de todalas riquezas, ouro, almíscar, beijoim, rubis, outras e muitas cousas ricas, aos quais se não quis consentir na terra que se vendesse nada porque têm já sabido se tratarem com nosco que logo serão destruídos, e por este respeito se mostraram pobres e tiranos e de pouco gasalhado, depois que receberam [os portugueses]. É gente de pouco poder e muita, por que lhe parecia que fazendo o que faziam que lhe não tornássemos lá mais;(…) faça V. Alteza bom fundamento desta terra e aproveite-se cedo dela, antes que se dane com nosco, e de fazer fundamento de pousar gente nela e grandes defesas ainda que já lá vão fustas de João Moreno.” Malaca, 1520.
 Foi, porém, António Correia – que chegou a Pegu em 1519 – quem logrou concertar o primeiro tratado…graças a um poema.  Sim, um poema, crede que não zombo de vós, meus estimados leitores e caríssimas leitoras!


Os primeiros encontros com os pegus não foram muito auspiciosos, apesar de os pilotos locais terem acorrido em paraus a remos para rebocarem a nau, onde tinha deflagrado fogo, pelo impetuoso rio Saluém até à barra. Ali esperaram treze dias pela autorização do rei, trazida pelo mandarim Cemim Bolegão, para poderem desembarcar. Por aquelas bandas nada se fazia sem peitas ou odiás – os presentes oferecidos não só ao rei como aos ministros, oficiais e a quem quer que mexesse uma palha ao serviço do requerente –, a fim de amaciar vontades, afastar escolhos e acelerar os negócios.


Sempre que a nossa embaixada desembarcava para tratar dos negócios ou das suas visitas, éramos rodeados por um enxame de vendilhões, pegadiços como moscas, zumbindo à nossa volta a oferecer os seus produtos. E mal partíamos de um lugar, corriam com as suas montadas atrás da nossa carroça, até ao lugar onde sabiam que havíamos de ir e ali nos esperavam e cercavam de novo até lhe comprarmos qualquer cousa. 


Só não vieram os alcovetos a oferecer esposas a prazo, como a António Correia e aos seus homens, apresentando-lhes moças de vários tamanhos, formas e idades, que os saudavam com muitos sorrisos e meneios provocantes, saracoteando-se de modo a que os panos que lhes cobriam as vergonhas, se abrissem na frente e permitissem vislumbrar os seus tesouros mais íntimos, fazendo gala em provocar desejo nos homens com uma descarada promessa de delícias e prazeres. 
Os alcovetos apresentavam-nas uma a uma, enunciando os predicados e dons das beldades, a fim de acrescentarem o interesse dos clientes que olhavam embasbacados para o magote de filhas de gente honrada que, com licença de seus pais, vinham oferecer-se seminuas, como vulgares mulheres de partido, para maridar com eles, durante uns dias ou meses, em troca de dinheiro, sem que por isso se sentissem desonradas. Desde que fizessem um contrato com os pais das moças que mais lhes agradassem, pelo tempo que ali estivessem, que elas os serviriam dia e noite como esposas no navio ou na pousada em terra; antes de partir, os portugueses pagariam a quantia acordada. 


Mas este conto, que é cousa de muito espanto, deixo para a próxima crónica, onde o poderei narrar com mais lazer e menos desprazer de vossas mercês...