25/04/2010

Memórias de um Nonagenário - Parte III (Fim)

Nos anos trinta, fora com desgosto que se despedira das meninas que deixaram de frequentar as suas aulas, por força de uma lei que proibira o ensino misto e também detestara ver os alunos com a farda obrigatória dos “lusitos”, da Mocidade Portuguesa – calças e bivaque castanhos, camisa verde e um cinto com um S na fivela, em homenagem a Salazar – a fazerem a saudação fascista de braço estendido. Mas, com o passar do tempo, sossegara-o a revolta e a troça da maioria dos seus alunos contra o fascismo e a censura e não se enganara, pois muitos teriam um papel determinante no futuro de Portugal. Uma boa medida fora decretada, alargando a escolaridade obrigatória para 6 anos, o que, se fosse cumprido, talvez lhe trouxesse mais alunos no futuro.


O aparecimento dos primeiros filmes sonoros portugueses – “A Severa” (1931) ou a Canção de Lisboa (1933) – e da grande estrela Beatriz Costa animaram um pouco a cidade e provocara algum alvoroço entre os alunos, que logo voltaram às “fitas” americanas, as quais, segundo afirmavam, eram muito mais excitantes e cujos diálogos, apesar de serem em inglês, se percebiam muito melhor que os portugueses. Apesar dos maus tempos, havia um forte espírito de camaradagem e pertença entre ele os seus alunos e recorda ainda, com carinho, a constituição do A. L. P.A. – o Núcleo dos Antigos Alunos do Lyceu de Passos Manuel, em 1937.

A década de quarenta tão pouco fora promissora, metade dela preenchida pela 2ª Grande Guerra Mundial, embora Salazar conseguisse a neutralidade. Portugal tornou-se no porto de abrigo de muitos refugiados, sobretudo crianças judias que alguns dos alunos hospedaram em suas casas e cujas sofridas histórias lhes ouvira contar. Lisboa fora também o ponto de encontro de espiões alemães e dos países aliados e os seus pupilos vibravam com as intrigas e os mistérios que, apesar da censura e da repressão, chegavam aos ouvidos do Lyceu.


Os rapazes faziam gazeta para irem namorar as meninas que já frequentavam, com as mamãs, os cafés, as esplanadas da Av. da Liberdade e a Gelataria da Praça dos Restauradores, de vestidos atrevidos e sem chapéu, como as estrangeiras. Lisboa, Capital de Império, queria mostrar-se cosmopolita e inaugurara a Exposição do Mundo Português e o Estádio Nacional. E em 1943, inaugurou-se a Feira Popular, com as suas luzes de cores, ruído de altifalantes e de máquinas de diversão, barracas de comes e bebes, bazares de tostão, tendas de tiro ao alvo e de pim-pam-pum. Pagava-se um escudo à entrada e o povo acorria à festa, gastando uns tostões para esquecer o amargo quotidiano. Ali perderam muitos estudantes as suas noites, o dinheiro dos pais e, por vezes, até a sua inocência!

O Lyceu alegrara-se com o fim da guerra após a derrota dos nazis, em 1945, e acompanhara os alunos no delírio da 1ª vitória da Selecção Portuguesa de Futebol sobre a Espanha (invencível há 16 anos!) por 4-1 e do primeiro triunfo no estrangeiro, contra a Irlanda (0-2), aclamando os 5 violinos da bola: Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Albano e Travassos . O Sporting fora, então, a equipa que mais títulos nacionais conquistara nesta década (3 campeonatos consecutivos) e por mais de uma vez fizera tocar o sino a rebate, para pôr termo às lutas travadas entre os seus adeptos e os do Benfica.

Com igual entusiasmo festejara a vitória da Selecção Portuguesa de Hóquei nos Campeonatos da Europa e do Mundo, transmitidos pela Rádio, a qual triunfa não só pela música, mas também pelos relatos dos jogos e com o teatro radiofónico, transmitido através das 240.000 telefonias que ligavam os portugueses ao mundo; todavia, jornalistas, escritores e opositores do regime são silenciados e morrem mais 43 pessoas nas prisões políticas ou abatidas pelas forças policiais.

Toca uma música suave e o velho Lyceu de Passos Manuel desperta das suas memórias, no alvor dos anos 50, e apruma-se com um sorriso a fim de receber os convidados e a homenagem que lhe prepararam para o dia do seu 95º aniversário. Oxalá que daqui a cinco anos, se ainda for vivo e estiver lúcido, possa recordar, das cinco décadas restantes da sua vida, os acontecimentos de que foi testemunha de ver e ouvir.

Porém teme que a sua progressiva decadência o impeça de vir a apreciar mais festejos ou mesmo de se manter de pé, se não lhe acudirem depressa, não com enganosas maquilhagens, operações de estética ou injecções de “botox” para esticar rugas e limpar as manchas da pele, mas de verdadeiras sessões de fisioterapia, de transfusões, de cirurgia profunda e reconstrução e reforço do esqueleto.

E, já agora, uma limpeza profunda aos ouvidos, para o livrar da imundície dos palavrões que é obrigado a ouvir, para poder escutar de novo, nas vozes dos alunos de agora e em trabalhos tão bons como os de outrora, a bela Língua Portuguesa, levada à altura dos céus nos textos dos poetas e prosadores portugueses, antigos e modernos, muitos deles seus antigos alunos. Oxalá! Oxalá...

Em nome do Lyceu,

pela escrivã Deana Barroqueiro

Fotos do Liceu Passos Manuel e de revistas antigas

3 comentários:

Cristina Rebelo Oliveira disse...

É muito bom ter conhecimento da história deste tão querido liceu.
Obrigada mais uma vez.
Oxalá! Oxalá!

Anónimo disse...

Obrigada mais uma vez, Professora Deana, por partilhar estas preciosas memórias.
Espero que um dia tenha ânimo para escrever sobre os restantes 50 anos.
Aguardo ansiosamente ;-)

Patricia Henriques

joão sousa disse...

Parece-me aos olhos de hoje que alguns dos profs não eram a favor do regime de então (anos 50 )e que estavam ali para serem observados .
O Prof Tavares Junior reconheceu-me , com cerca de 30 anos, disse o meu nome (Reino) , como sabia de todos os seus alunos de Portugues .