Memórias de um Nonagenário - Parte I
Depois de ter dobrado o cabo do Século XX e entrado no Terceiro Milénio, chegara ao dia 9 de Janeiro de 2006, com a provecta idade de 95 anos (menos 5 para um século!). Mais do que o efeito do frio e da humidade acumulada em quase dez décadas de existência, esta ideia causou-lhe um arrepio que lhe arrepanhou as rugas do tecto e do soalho e, perpassando através da ossatura de colunas dos seus claustros, lhe atravessou a pétrea carnação das paredes até lhe atingir os fundamentos da alma. Então, o velho Lyceu Passos Manuel estremeceu de angústia pela incerteza do Futuro e, recolhendo-se ao sossego dos seus Arquivos, nas caves bolorentas, buscou o consolo das recordações, viajando no tempo até ao mais belo dia da sua longa vida...
O parto e os primeiros anos de crescimento haviam sido problemáticos, todavia, em
Nos primeiros tempos vivera em pânico, temendo confrontos ou uma dessas desgraças que sempre ocorrem em lugares sobrepovoados, capazes de pôr em risco a integridade dos jovens. Não esperara tamanho sucesso, pois estava preparado para acolher um número máximo de mil estudantes, no entanto, o orgulho de ser o maior Lyceu do país compensara o inconveniente do excesso, tanto mais que nesse excedente entrava a graça, a beleza e o espírito rebelde de 15 meninas dispostas a disputar aos companheiros um lugar ao sol no mundo das Ciências (inspiradas por certo no exemplo de Carolina Beatriz Ângelo que desafiara o poder masculino exigindo votar).
Mal tivera tempo de se habituar ao ruído e agitação, quando no dia 20 do mesmo mês os estudantes decretaram greve, ou mais propriamente, “fizeram parede” (“greve” é só para quem recebe salário) a favor da reintegração do professor de Inglês, Adolfo Benarus, expulso pelo Conselho de Professores por usar métodos modernos de ensino em vez das práticas rotineiras dos seus colegas.
E instaurara-se o pesadelo! Com o credo na boca, assistira durante a semana da dita “parede” a violentos confrontos entre os alunos e a Guarda Nacional Republicana, que só terminaram por intervenção do Ministro. Passado o susto, ficara-lhe o sangue a correr mais vivo nos veios de pedra, cheio de brio pela conduta dos seus jovens que se tinham batido, contra a injustiça, pela qualidade do ensino e nesses dias, fizera soar o sino da entrada tão festivamente como se fosse uma trombeta heróica.
Fora sem dúvida uma década difícil, depois de uma revolução que abolira a monarquia e proclamara a República, em 5 de Outubro de 1910, seguida por 29 mudanças de Governo, 18 intentonas ou revoluções, 20 revoltas populares e 3 atentados, além da participação de Portugal na Grande Guerra Mundial de 14-18. Com tudo isto, não era de espantar que, tanto os alunos, como os professores e os dedicados funcionários, andassem com os ânimos exaltados, a viverem em contínuo alvoroço e susto, com grande prejuízo da reputação do Lyceu.
Mas não só de política ou de guerra se falava no gabinete do Reitor ou nas salas de convívio, pois uma outra revolução ou escândalo se dera no mundo das Artes e das Letras, cujos ecos lhe chegavam a toda a hora aos ouvidos – a dos movimentos de Vanguarda, Modernistas e Futuristas – com a chamada geração do Orfeu: Mário de Sá-Carneiro (antigo aluno), Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor, Amadeo de Souza-Cardoso e tantos outros que abalavam o marasmo cultural de Lisboa, dominado pelo Dr. Júlio Dantas, inspirando os seus alunos, despertando-lhes o espírito e a curiosidade para imaginarem, experimentarem e criarem um mundo novo.
A revolução tecnológica tornara-se uma realidade, com 679 automóveis em circulação pelo país (com acréscimo de mortalidade dos peões resultante da utilização indevida pelos filhos dos condutores, à revelia dos pais) e ele dera graças aos céus por os professores da vizinha escola primária, com um ordenado mensal de 20$000 e os seus próprios docentes (embora ganhando um pouco mais), não poderem comprar tão dispendiosa e infernal máquina, evitando assim um fatal aumento de acidentes entre os seus alunos. Outra invenção diabólica invadira as casas dos honestos burgueses, distraindo os estudantes e afastando-os dos seus deveres, facilitando namoros secretos, conspirações e tramóias – o telefone, esse canal de bisbilhotice atingira o espantoso número de 6.000 assinantes!
4 comentários:
Há minutos atrás entrei no meu blogue para escrever algo sobre este que também foi o meu Liceu. Olhando para o lado esquerdo, reparo no título e foi impossível não o ler.
Chame-me saudosista, professora mas foi ali que passei os melhores anos da minha vida. Os amigos que me acompanham, foram meus colegas e é sempre uma alegria quando falamos.
Obrigada
Obrigada, Cristina.
Se mais gente gostar, porei o resto deste texto que escrevi para os festejos do 95º aniversário do Liceu /Escola Passos Manuel, em 2006.
Esta semana estive no Liceu Passos Manuel. Fui ver, mais uma vez, as alterações que fizeram. Hoje estive presente no meu, no nosso, Liceu. Vivi os melhores dias da minha vida, ali, naquele espaço grandioso. Foi ali que me ensinaram, que fiz amigos de uma vida, tanto de colegas de carteira, como de docentes, como de auxiliares, como de amigos e colegas do ALPA. Recordo com saudade aqueles anos pós 25 de Abril, conturbados, de constituição da Associação de Estudantes, a primeira. No meu primeiro ano ainda encontrei o Vinhas Novais como Reitor (o ultimo como Reitor). Bons tempos, boas memorias.
Claro que sim, fico grato por nos dar a conhecer o que escreveu sobre o Lyceu Passos Manuel.
O meu agradecimento por recordar um espaço que me diz muito. Muito obrigado.
Professora,
(Permita-me que a chame assim até porque efectivamente foi minha professora...)
Eu gostava muito de ler o texto na integra, espero sinceramente que que haja mais interessados, para que eu possa ter esse privilegio.
Obrigada,
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