17/09/2015

No rasto de Fernão Mendes Pinto – III



Crónica Terceira


Fizemos uma curta escala em Krung Thep Maha Nakhon (Bangkok), cerca de Ayutthaya, no reino do Sião, mas não nos permitiram desembarcar e deixar as instalações do porto, por estarem de novo às avessas com o inimigo reino do Sirião (Pegu e Arracão).

Assim, como sempre queremos estar de bem com todos os povos, seguimos logo nossa derrota para o porto de Yangon (Rangum), onde desembarcámos com a embaixadora e, já livres de disfarces, nos mostrámos como bons portugueses e fomos conduzidos por oficiais bramás, numa confortável carroça que nos abrigou de uma terrível chuvada de monção, até uma formosa e luxuosa hospedaria de ingleses, conhecida por The Strand, onde costumam pousar regaladamente os emissários estrangeiros e os viajantes mais nobres e ricos que peregrinam ou espiam estas nações.

Foram, porém, portugueses os primeiros ocidentais a estabelecerem tratos de paz e amizade, assim como de mercancia, com estes povos e também a participar nas suas guerras, por serem os mais expertos arcabuzeiros e mosqueteiros que no mundo havia.
Lembro alguns incidentes nos primeiros encontros dos portugueses com os reis bramás, sobretudo um escrito anónimo de um dos muitos aventureiros, mercenários, comerciantes e piratas que por aqui buscaram melhoria de vida, dando a conhecer a estes mundos (umas vezes bem, outras mal) o nosso pequeno Portugal, a nossa preciosa língua e costumes, assim como os produtos da Europa.
Para estes povos éramos (e em algumas partes ainda o somos hoje) uma gente estranha, um Outro que pouco tinha a ver com eles, como podeis ver neste texto:


«Chegámos onde el-rei estava assentado em um muito grande catre, assim mesmo dourado, com muito grande soma de coxins grandes e pequenos todos lavrados e por eles muita pedraria e aljôfar. E chegados diante dele lhe fizemos nossa reverência segundo o costume da terra, que é com as mãos cruzadas sobre os peitos e a cabeça quão baixa possa ser. E el-rei por nos fazer grande honra se assentou na cama direito e se riu para nós; e então lhe amostrámos as armas (…).
Depois de tudo isto apresentado lhe mostrámos o cavalo que levávamos, que era arábio ruço pombo, em o qual el-rei mandou cavalgar e que o passeassem. E depois de bem passeado, el-rei ficou mui contente dele, porque era formoso e bem arrendado. Isto assim acabado, fomos todos tomados e levados por certos homens fidalgos que nos meteram em uma câmara que debaixo deste cadafalso estava e nos vestiram a cada um sua roupa de brocadilho, feitas à usança da terra, e também nos deram cada um sua touca.
E isto vestido sobre os nossos vestidos que levávamos e com uns cingidouros que nos deram, cingidos por cima, parecíamos bestas mal albardadas. E assim nos tomaram a levar perante el-rei, o qual desde que nos viu com tão más disposições começou-se de rir, perguntando a esses fidalgos que lhes pareciam os portugueses vestidos à sua arte.
E eu, que não estava muito contente com tal zombaria, fiz que não atentava nisso e olhei se podia ver alguma cousa do aparato d’el-rei; e contei os homens da guarda que estavam dentro.»

Quanto à nossa embaixada, não tivemos mãos a medir, pois não há fome que não dê em fartura.
Assim, na hospedaria, por volta das seis horas da tarde, nos serviram um lauto banquete de boas-vindas, que nos tirou a barriga das misérias da triste comida do navio, feita de biscoito e viandas mal gisadas e sem sabor.

Porém, a embaixadora tinha aprazado um encontro com o cardeal Charles Bo e o seu bispo auxiliar Saw Yaw Han que celebrou missa em nossa intenção e nos serviu, em seguida, uma ainda mais lauta ceia do que a da pousada, na casa episcopal, onde, apesar de estarmos de pança cheia, todos nos esforçámos em comer o mais que pudemos, para não ofender a quem se havia dado a tão grandes trabalhos, cuidados e gentilezas para nos homenagear. Como o padre Peter, um descendente de portugueses de Mandalei, cujos antepassados faziam parte da guarda e escolta do rei.

Com tantas comezainas e, por causa da monção, a embaixada ficou desconcertada e com o itinerário alterado, de forma que da cidade de Rangum nada vimos, além de um fraco vislumbre através das janelas da carroça, batidas pela chuva.

1 comentário:

Jorge Lourenço Goncalves disse...

Em estilo apropriado e fluente!