17/01/2011
Uma crise planetária da educação II
Continuação do texto de Martha Nussbaum: excertos do artigo publicado no Courrier Internacional, n.º 175, Setembro de 2010 (ed. portuguesa), com Trad. de Ana Cardoso Pires[o texto publicado no Courrier Internacional, é uma versão condensada do primeiro capítulo do livro Not for Profit: Why Democracy Needs Humanities]
Uma crise planetária da educação (cont.)
(...) "Para compreenderem efectivamente o mundo complexo que os cerca, os cidadãos não têm suficientes conhecimentos factuais nem de lógica. Necessitam de um terceiro elemento, estreitamente ligado a esses dois, a que poderia chamar-se imaginação narrativa. Noutros termos, a capacidade de se pôr no lugar do outro, de ser um leitor inteligente da história dessa pessoa, de compreender as emoções, os desejos e os sentimentos que ela pode sentir. Essa cultura da empatia está no centro das melhores concepções modernas de educação democrática, tanto nos países ocidentais como nos demais. Isso deve fazer-se em grande parte no seio familiar, nas escolas, e mesmo as universidades desempenham também um papel importante. Para preenchê-lo correctamente, devem atribuir um espaço nos seus programas para as Humanidades e as Artes, visto que melhoram a capacidade de ver o mundo através dos olhos do outro – capacidade que as crianças desenvolvem por meio de jogos de imaginação.
(…) Devemos cultivar os «olhares interiores» dos estudantes. As artes têm um duplo papel na escola e na universidade: enriquecer a capacidade de jogo e de empatia, de uma maneira geral, e agir sobre os pontos cegos, em especial.
Esta cultura da imaginação está estreitamente ligada à capacidade socrática de criticar as tradições mortas ou inadaptadas, e fornece-lhe um apoio essencial. Não se pode tratar a posição intelectual do outro com respeito sem ter pelo menos tentado compreender a concepção de vida e as experiências que lhe estão subjacentes. Mas as artes contribuem também para outra coisa. Gerando o prazer associado a actos de compreensão, subversão e reflexão, as Artes produzem um diálogo suportável e até atraente com os preconceitos do passado, e não um diálogo caracterizado pelo medo e pela desconfiança. Era o que Ellison queria dizer quando qualificava o seu Homem invisível como «jangada de sensibilidade, de esperança e de divertimento».
(…) As Artes, diz-se, custam demasiado dinheiro. Não temos meios, em período de dificuldades económicas. E, no entanto, as Artes não são necessariamente tão caras como se diz. A literatura, a música e a dança, o desenho e o teatro são poderosos vectores de prazer e de expressão para todos, e não requerem muito dinheiro para os favorecer. Diria mesmo que um tipo de educação que solicita a reflexão e a imaginação dos estudantes e dos professores reduz efectivamente os custos, reduzindo a delinquência e a perda de tempo induzidas pela ausência de investimento pessoal.
Como se apresenta a educação para a cidadania democrática no mundo actual? Bastante mal, temo eu. Ainda se porta relativamente bem no lugar onde a estudei, nomeadamente nas disciplinas de cultura geral dos currículos universitários norte-americanos. Esta faixa curricular, em estabelecimentos coma o meu [a Universidade de Chicago], beneficia ainda de um apoio generoso de filantropos. Pode-se mesmo dizer que é uma faixa curricular que trabalha melhor hoje para a cidadania democrática do que há 50 anos, época em que os estudantes não aprendiam muito sobre o mundo fora da Europa e da América do Norte, ou sobre as minorias do seu próprio país. Os novos domínios de estudo integrados no tronco comum aumentaram a sua compreensão de países não ocidentais, de economia mundial, de relações intracomunitárias, de dinâmica de género, de história das migrações e de combates de novos grupos para o reconhecimento e a igualdade. Após um primeiro ciclo universitário, os jovens de hoje são, no seu conjunto, menos ignorantes do mundo não ocidental que os estudantes da minha geração. O ensino da literatura e das artes conheceu uma evolução similar: os estudantes são confrontados com um leque de textos claramente mais vasto.
Não podemos, contudo, afrouxar a vigilância A crise económica levou numerosas universidades a cortar nas Humanidades e nas Artes. Não são, certamente as únicas disciplinas abrangidas pelos cortes. Mas sendo as Humanidades consideradas supérfluas por muitos, não se vê inconvenientes em amputá-las ou em suprimir totalmente certos departamentos. Na Europa, a situação é ainda mais grave. A pressão do crescimento económico levou muitos dirigentes políticos a reorientarem todo o sistema universitário – o ensino e a investigação, em simultâneo — numa óptica de crescimento.
(…) Numa época em que as pessoas começaram a reclamar democracia, a educação foi repensada no mundo inteiro, para produzir o tipo de estudante que corresponde a essa forma de governação exigente: não se pretendia um gentleman culto, impregnado da sabedoria dos tempos, mas um membro activo, critico, ponderado e empático numa comunidade de iguais, capaz de trocar ideias, respeitando e compreendendo as pessoas procedentes dos mais diversos azimutes. Hoje continuamos a afirmar que queremos a democracia e também a liberdade de expressão, o respeito pela diferença e a compreensão dos outros. Pronunciamo-nos a favor destes valores, mas não nos detemos a reflectir no que temos de fazer para os transmitir à geração seguinte e assegurar a sua sobrevivência".
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