27/08/2010

Cada romance é como um puzzle


Nas minhas conversas com os leitores, é muito frequente surgirem perguntas sobre a motivação e o processo de conceber um romance. Sendo a escrita de um livro de ficção um acto criativo, cada autor terá decerto um modo próprio de o fazer. Assim, só posso falar da minha experiência.

A motivação para a criação de romances históricos surgiu há quase duas décadas (quando em Portugal muito poucos autores se dedicavam a este tipo de obra literária), com o desejo de dar a conhecer aos portugueses uma época espantosa da nossa História e da nossa Literatura - assim como nos restantes domínios da Cultura e da Ciência -, que foi o período dos Descobrimentos, tão injustamente remetidos a um patético tabu, em que era intelectual e politicamente incorrecto dizer-se bem dessa nossa expansão pioneira pelo mundo, durante os Séculos XIV, XV e XVI.

Uma atitude muito portuguesa, essa de desprezar o que é nosso! Tão contrária ao orgulho mostrado por outras nações que nos foram no encalço, para aprenderem connosco e nos roubarem depois, apoderando-se pela força das armas das nossas fortalezas e feitorias, praticando a sua expansão com a ocupação de mundos e de povos descobertos por nós, os quais, durante séculos e até ao início do Séc. XX, escravizaram e exterminaram com muito maior violência e frieza do que as exercidas pelos portugueses nessa época em si mesma brutal e bárbara (basta lembrar os Ingleses na Austrália, um entre muitos exemplos das nações europeias, para já não falar das de outras áreas geográficas).

Não eram, todavia, os feitos militares que me fascinavam neste período, eram sobretudo os heróis da extraordinária saga das Descobertas: navegadores e exploradores aventurando-se, antes de qualquer outra gente, em viagens impossíveis por mar e por terra; sábios descobridores dos astros, dos ventos, das correntes e das rotas marítimas que desenharam cada curva, linha ou ponto dos mapas do mundo moderno; estudiosos dos segredos da natureza, fazendo as primeiras descrições científicas modernas das drogas e das artes de curar os enfermos. E, acima de todos estes, os escritores - poetas e prosadores - com o espírito aberto do Renascimento, capazes de captarem em obras originalíssimas, de prosa e verso, esses mundos novos, essa surpresa contínua e maravilhada da descoberta do Outro, com as suas diferenças e semelhanças. Mundos até então encobertos, onde o insólito e o inexplicável podiam causar um terror supersticioso ou mesmo a morte, sem todavia lograrem destruir a curiosidade e o desejo de saber mais e de ir sempre mais longe.

É esse espírito, essa visão muito particular dos novos mundos (quase sempre fruto de vivências e experiências) e essas obras que eu quero dar a conhecer aos leitores, em cujos genes seguramente ainda perdura a marca desses homens que, na maioria dos casos, nem sequer têm os seus nomes impressos nos arquivos da História, embora tenham ajudado a construir as nossas vidas e o nosso futuro.

Existem muitas definições e teorias sobre o que é ou deve ser um romance histórico, se deve manter-se fiel à verdade das fontes e dos factos que narra, fazendo uma reconstituição rigorosa da época ou se, pelo contrário, sendo uma obra de ficção, o seu autor tem liberdade para reinventar a história a seu bel-prazer, sem as algemas da fidelidade histórica. Entre estes dois extremos creio que caberão todos os romances até hoje publicados.

Talvez por defeito de formação, porque me fiz como sou na convivência dos grandes mestres da Literatura portugueses e estrangeiros, confesso-me, em parte, herdeira de Alexandre Herculano e da sua concepção de romance histórico. Considero que este tipo de romance deve dar ao leitor algo mais do que uma intriga, um enredo; ele é um meio privilegiado para a partilha de conhecimentos, fruto das pesquisas do escritor sobre determinado acontecimento ou personagem da História.

Por estas razões, não só procuro manter-me fiel aos acontecimentos, como tento recriar os ambientes, temporais e espaciais, com grande pormenor (por vezes quase obsessivo, reconheço), porque quero fazer o leitor viajar no tempo até essa época, para ver o que lhe é descrito através do olhar das personagens e as ouça falar com a voz que lhes é própria.

Por outro lado, a minha formação em Literatura e o conhecimento das obras e dos autores deste período, levam-me a construir cada romance segundo os modelos e recursos narrativos que então vigoravam, como por exemplo, quando dou particular relevo ao papel do narrador-comentador e ao entrelaçamento das vidas das duas personagens em capítulos curtos, no D. Sebastião e o Vidente, ou escolho a estrutura de romance de cavalaria e busca do Graal para O Espião de D. João II cujo herói é o errante e solitário cavaleiro Pêro da Covilhã (à procura do mítico Preste João), ou ainda o labirinto das viagens e recordações de Bartolomeu Dias em O Navegador da Passagem, cujo contexto é a intrincada rede de jogos políticos de D. João II e D. Manuel.

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