DE BELÉM A SANTOS-O-VELHO

Trigoso[4] vem meu amo e com razão que a jornada até à Ribeira de Lisboa tem a lonjura de três mil passos, muitos por ásperos carreiros, que a direito nos tolhe o mar o caminho e há que entrar na cidade pela porta dos Paços de Santos-o-Velho. “Desenguisa-te, desgorgomilado[5], que quem não trabuca não manduca!” brada-me com fingida sanha, por ser homem d’ ânimo aprazível e faceiro. “Uxte! Uxte! que se faz tarde!” E lá vem o estalido da língua, como só ele sabe fazer, qual estoiro de petardo no silêncio da alvorada, não havendo mula ou jumento, por mais entirrado[6] que seja, que ao ouvi-lo não se meta a caminho, tão esforçado, como se disso dependesse a salvação de sua vida. Rompemos, pois, num passo vivo que a carrocinha não vai cheia e os mercaderes não esperam, pois lá diz o dito que "quem não parece[7], esquece".
Ladeando o muro, e muito antesde dobrar a quina do Mosteiro, afemenço[8] o vulto da Torre de S. Vicente a que chamam de Belém, toda em pedra de cantaria. Tem quatro pisos, mas é tão
formosa e airosa que parece mais pequena, feita assim, sobre rochas, mar dentro. Guarda o Mosteiro e o porto de Lisboa, sempre de vigia à passagem estreita, para que nenhuma nau se possa acercar sem seu consentimento.

Agora, no lusco-fusco da alba, abre os olhos e a boca em jeito de sono ou pasmo, mas nada lhe passa desapercebido.
A frontaria do Mosteiro de Santa Maria de Belém alteia-se negra e temerosa, pois a hora é de avantesmas e de maus encontros e, a pesar do varapau do meu amo e da sua sobeja
arte de varejar um terreiro de malandrins, um arrepio de medo eriça-me os pelos do toutiço. “Toma-me tento ao caminho, ó malparido, que a carroça vai de banda!”, brada-me iroso do meu tropeço, que tão pouco lhe praz a escurana e o que ela pode esconder.
A porta travessa, virada para o Tejo, é a mais formosa e melhor lavrada do Mosteiro, abrindo para uma comprida e galante varanda de pedra talhada, de longo do caminho público até ao cabo[9] de todos os jardins e casas do convento. Tendo as gentes passo[10] às suas arcadas, estas oferecem guarida e pousada, durante a noite, a grande soma de matelotes[11] e forasteiros que saem das naus surtas aqui no cais. De dia, é um ferver de vida com as idas e vindas dos mercadores no concerto de seus tratos de especiarias, ricos panos e pedraria da Índia ou de escravos da Guiné.


El-Rei D. Manuel começou de fazer este Mosteiro no ano de 1499 – no lugar de uma ermida do Infante D. Anrique[12] a Nossa Senhora da Estrela –, para celebrar a chegada de D. Vasco da Gama, depois de descoberta a derrota para a Índia. Espantoso feito, sem dúvida, que deu causa a muitas das fortunas, mas também das grandes misérias, do presente! Não poupou El-Rei Venturoso despesas para a edificação deste maravilhoso templo que ele elegeu para jazigo de sua sepultura, mas que não viu acabado por se ter, primeiro que ele, acabado sua vida. Agora seu filho, El-Rei D. João III, o está acrescentando e levando a cabo, como se pode ver pelos estaleiros (a esta hora sem viv’alma).

“Rei e Príncipe seviu
De Castela, e lá andou,
Di a pouco descobriu
A Índia, e a tomou,
Como todo o mundo ouviu,
Tomando reinos, e terras
Por mui guerreadas guerras,
Ganhando toda a riqueza
Do Soldam e de Veneza,
Subjugando mares, serras.
Vimos-lhe fazer Bethleem
Com a gram torre no mar,
As casas do almazem
Com armaria sem par
Fez só el Rei que Deos tem:
Vimos seu edificar,
No Reino fazer alçar
Paços, igrejas, mosteiros,
Grandes povos, cavaleiros,
Vi o reino renovar” .

(Continua...)
[1] Encoradouro.
[2] Tolhido de frio, enregelado.
[3] De geada, de gelo.
[4] Apressado.
[5] Desembaraça-te, comilão!
[6] Teimoso.
[7] Aparece
[8] Avisto.
[9] Extremo.
[10] Acesso, passagem.
[11] Marinheiros.[12] Infante D. Henrique, filho de D. João I e impulsionador dos Descobrimentos.
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