10/03/2010

Desde o Minho...

O meu sorriso

Era uma tarde como outra qualquer. Eu acomodei o corpo ao assento do carro. Ele tardaria um pouco mais a chegar. Gosto de me antecipar à hora marcada, para apreciar o antes. Esfregava as mãos e impingia-lhes o sopro de uma boca sem palavras. Lá fora, os carrapichos verdes das árvores ao fundo, agitavam-se, comovedores como asas fincadas. Pelo pára-brisas desceu um gato pardo, como se adivinhasse que no assento
de trás havia um peixe avermelhado num frasco de vidro, que arregalava os olhos e batia com a cauda em desespero.

Depois dos estendais, era um campo descosido de vedações, onde o Maio costuma soltar flores de muitas cores, encavalitadas na sombra que os pássaros deixam ficar.

Decidi abrir a porta. O gato escapuliu por um vau que eu desconhecia. Corri pelo campo fora, com asas cosidas aos braços e numa nuvem cinzenta verti a água do frasco e o peixe foi com ela. Viajaram até à beira do rio e quando ele chegou junto a mim mostrei-lhe as minhas mãos molhadas, com cheiro a cardume.
Beijou-me os olhos e eu acordei.


Cerzir palavras

A névoa aos pés do rio era manto alinhavado por escamas. Assim o descreveu a minha boca fechada no papel desdobrado em cima da pedra, numa friagem que intumescia as palavras de uma cor misteriosa. Um pintarroxo poisou num barquito que vacilava entre a noite e a madrugada. Tinha uma baga presa no bico.

Só quando raiava e a aura lhe trazia o pescador de volta, a rota das pétalas era retomada. Ele vinha com o pendor da lua nos lábios. O mesmo rosto escanhoado e as mãos grandes na flor prensada em páginas manuscritas, lá no fundo do cesto de vime, com cheiro a horas coadas por redes quiméricas. Eu via-os partir. E durante algum tempo vogava com eles. As asas soltavam as amarras do pensamento. O sacudir das águas calçava os pés do rio lentamente, como quem quer seguir o sonho que medrou e que o simples piar delata.

Uma chuva morna ancorou pouco depois e descreveu ilhas azuis no papel e istmos nos meus dedos. A écharpe escorregou. Caiu no chão. Voltou ao contorno do pescoço. Notei-lhe tufos. Eram as pétalas garridas que o pescador não soube achar.


Navegadora,
Uma tarde de Inverno à lareira e com a Maria João Pires a tecer o ar de brilhos.
O beijinho e o sorriso.

Se o azul do céu tiver corrupios brancos são sementeiras de palavras.

Isabel

1 comentário:

DEANA BARROQUEIRO disse...

Isabel

a tecer a filigrana das suas palavras é um bem precioso.

Que sorte que tenho em a conhecer! E só de alma, que é aquilo que raramente se mostra.

Obrigada, poetisa encoberta

Um beijo e um sorriso