04/10/2010

Memórias de Estalo - Capítulo II

SANTOS-O-VELHO

Asinha galgamos a meia légua que nos separa da porta sul da cidade, com o sol a romper, anunciando que o dia há de ser de truz e Lisboa parece saída de um banho de ouro na rua dos ourives. Como todas as manhãs, por estes caminhos, corre uma bicheza de gentes rumorosas e açodadas que nos fazem atardar o passo.

Muitos são almocreves como meu amo, com suas bestas carregadas de fazenda que vêm vender à cidade, mas há também estrangeiros à cata de fortuna, vendedeiras e oficiais de muitos ofícios que moram fora de portas e vem fazer por sua vida. Há o costumeiro alvoroto à entrada, com muitos empuxões, correrias, grande grita de “À que d’el-rei!” e larga soma de doestos e pragas, quando os soldados e beleguins carregam sobre os ajuntamentos, semeando cacetada de criar bicho. Rompemos por este rio de gente com algum perigo e grandes trabalhos.

“P’ra frente, Estalo!” grita meu amo, exasperado: “Abre-me caminho, home, não sejas cebolo! Uxte, Uxte, sendeiro!”. E aquele seu estalar da língua contra os beiços ressoa no ar como um açoute, fazendo estremecer bestas e gentes que logo se apartam abrindo estrada para a nossa carrocinha.

Por fim, entramos na cidade pelo caminho que leva ao Paço Velho e avivamos o trote que a manhã já rompeu e, por ser a primeira terça feira depois do dia de Todos-os-Santos (um mui solene feriado de procissão e missas de finados, no qual nada se pôde mercar) haverá hoje Grande Feira no Rossio onde se há-de comprar e vender dobrado. Ora aí temos o Paço, mas não vamos parar que não há recado para entregar e de verduras não hão mister, pois têm mui boas e frescas hortas com seu hortelão.

O formosíssimo Paço Real de Santos-o-Velho, assim chamado por nele se haverem guardado os corpos de três Santos Mártires – os irmãos Veríssimo, Máxima e Júlia – do tempo dos Romanos que os perseguiram e mataram com grande crueza. Dá gosto saber todas as histórias da cidade de Lisboa, pois assim, conhecendo-lhe o coração, sempre a vejo com olhos de maior amor. Grande proveito tenho tirado destes meus serviços aos Freires do Mosteiro dos Jerónimos, pois são mui sabedores e sempre andam praticando sobre todas as cousas da vida, do céu e da terra e eu não tenho mais que ouvir e aprender. Assim também ouvi falar que os corpos dos Santinhos já aqui não repousam, pois foram trasladados para Santos-o-Novo, no tempo de D. João II e da piedosa Rainha Dona Leonor, com muita despesa, em devota e solene procissão.

Dizem que foi o primeiro rei de Portugal quem aqui ordenou de fazer uma Igreja, que seu filho, D. Sancho I, doou aos irmãos da Ordem de Santiago para aí fazerem suas casas e viverem com suas mulheres. Quando os Cavaleiros partiram para a guerra contra a Mourama, suas mulheres tomaram a seu cargo o lugar, criando uma casa religiosa, o Mosteiro de Santos, e tomando o nome de Comendadeiras de Santiago.

Há alguns anos (inda eu não nascera) estas Comendadeiras deixaram o Mosteiro indo para a parte oriental da cidade, fundando aí a Casa Religiosa de Santos-o-Novo, onde inda vivem. Então, o rico-homem Fernão Lourenço tomou o sítio de aforamento às ditas freiras, erguendo aqui um maravilhoso paço que El-Rei D. Manuel cobiçou e ao qual deitou a unha, dando-lhe o nome de Paço Real de Santos e usando-o para receber suas magnas embaixadas, como a do Prestes João das Índias que dizem ter sido cousa espantosa de se ver e lhe deu muita fama. E também Mestre Gil Vicente apresentou aqui à mui nobre Rainha Velha D. Leonor e a El-Rei D. Manuel o seu Auto da Fama, no ano de 1510, se me não engana a memória. Agora, El-Rei D. João III fez dele sua residência e aqui passa alguns meses do ano, assistindo à chegada e partida das naus e escutando o Tejo a bater docemente de encontro aos muros do jardim.

(Continua...)

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