O Hospital de Todos-os-Santos estende-se do Rossio à Betesga, com trinta e quatro arcadas de pedraria e sua abóbada que vai por baixo, de onde parte esta grande Feira, que já está a ferver de uma gente alvorotada e disputando em raivosa grita os preços das fazendas.
Passamos diante do portal mui bem lavrado, com escadaria de dezanove degraus de patamares, que é cousa mui formosa de se ver por não haver outra igual em Lisboa, e paramos na esquina que faz o Rossio com a rua da Betesga, a ala sul do Hospital que abriga o Criandário com suas amas, para as crianças enjeitadas, e a Albergaria para os peregrinos e pedintes.
O porteiro chama o Comprador do Hospital que dá ordens a um mancebilho(1) e a duas moças das cozinhas para descarregarem a carroça, enquanto oferece um pichel de vinho a meu amo e o leva para dentro. Como sempre, vou ter de esperar algum tempo té ele aparecer de olho mais vivo e humor mais prazenteiro.
Sem mexer uma palha, que já fiz a minha obrigação, deixo que as moças me aliviem da carga, e vou mirando alrededor, pois aqui muito se aprende só de olhar as gentes, sendo o bicho homem uma criatura cheia de surpresas. E assim é que, no meio desta azáfama de idas e vindas, vejo uma mulher embiocada a coser-se contra os muros do Hospital, com modos de assustada e um emburilho(2) nos braços, o qual, de passagem, vai deixar escusamente na porta de serventia, para logo fugir trigosa.
Uma sorte de ganido de cainçada pequena parece sair do emburilho, primeiro fraco, mas de seguida tão forte que faz acorrer as moças de dentro do Hospital. “Ai, Jesus, qu’ é outro enjeitadinho!” diz a mocetona, abaixando-se para tomar a criança nos braços, emburilhando-a no mantelote : “Vai chamar uma das amas, Maria. Vai asinha , cachopa, que o anjinho tá a sofrer!” Gente curiosa acerca-se da moça para olhar o enjeitado.
“Más entranhas há-de ter essa madre que tal filho deita fora!” e a mulher cospe para o chão com desprezo. “Ninguém viu a negregada?” pergunta um almotacém , “Botara-lhe eu a mão e logo a fizera arrepender!” Mas tão só eu a vira, a esgueirar-se para a Praça da Palha e a perder-se num mar de gente. “Estas moças d’agora só pensam em amores e folgação e despois… ai, Jesus, qu’emprenhei! e toca a deitar o rebento fora. Deviam ser todas bem açoutadas na picota ”. O almotacém(3) protesta: “E não o são, quando se lhes descobre o rastro?” “Antes fossem garrotadas ou mortas à pedrada, como perras raivosas!”
A Ama surge trigosa e abespinhada: “Melhor fora teres levado o anjinho lá p’ra dentro, que ‘stares pr’aqui no soalheiro com mariolas e mulheres ociosas! Tevessem os homes honra em não abandonar as mulheres à sua desgraça e já isto não acaecera . E não se olvide, menina, que no melhor pano cai a nódoa!” Embalando a criança e murmurando: “Com este, já são cinco esta semana!”, a boa mulher entra no Hospital deixando a metediça a resmonear de despeito.
E, com todo este alvoroto não há uma alma generosa que s'alembre do meu penso, que estou sem comer e beber desde manhãzinha, que a esta hora meu amo já deve estar bem comido e melhor bebido, folgando com as moças da cozinha que, como ele não se cansa de falar, são guapas e faceiras. Porém, como diz o ditado, Em tempo de figos não há aí amigos! É encher a pança, sem olhar a mais ninguém… Se mais depressa falara… melhor m’ aviara! Eis meu bom amo, à porta do Hospital, a desfazer-se em cortesias e agradecimentos e, à bofé de quem sou(4), que traz uma alcofa de comida!
(1) Rapazola.
(2) Embrulho
(3) Inspector de pesos e medidas
(4) Por minha fé! (exclamação).
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