01/11/2010

Memórias de Estalo - Capítulo VI


Feira no Rossio

Junto ao chafariz do Rossio, onde meu amo me deixou, enquanto mastigo consolado a comidinha saborosa, não perco nada do que se passa na Feira da vastíssima Praça. Aqui mesmo ao lado, grande soma de mulheres, vindas dos montes, vendem em suas bancas pães-de-ló, queijinhos frescos, requeijão e marmelada. Além, sapateiros, aljabebes[1] e carapuceiros gritam suas mercancias, lado a lado com ferro-velhos e batefolhas[2] a amostrar os seus caldeiros, bacias, castiçais, almofarizes e muitas outras cousas d’arame, latão e cobre. A seguir, as tendeiras de louça de barro disputam o seu lugar aos cesteiros com suas gigas e cestos para vindima e apanha da azeitona. Mais ao sul são os mercados das especiarias, das bestas e dos escravos.


No alpendre do Hospital, as tendinhas de vestimentas e enfeites são de maior luxo, com fanqueiras e mercadores que vendem linhos, veludos e brocados de Flandres, Paris e Veneza, sedas da China e finos panos de desvairadas cores, da Índia; jóias e plumas para as donas e donzelas fidalgas que não desdenham de os vir mercar a esta Feira. Muitas compram aos passarinheiros aves raras, de lindas penas que falam como homens ou cantam como anjos (isto dizem os fradinhos Jerónimos que eu nunca ouvi um anjo, nem sei que cousa é!).


Pedintes de ofício, mostrando suas chagas e pedindo esmola “per mor de Deos”; mariolas[3] à cata de serviço, lançando chufas[4] às moças; ranchos de ciganos fazendo seus jogos, danças e cantares; pregões sem conto das mais desvairadas e estranhas cousas que a memória não alcança, fazem uma tal zoeira que não há quem se possa entender. Alguns, por demais ociosos ou descontentes da vida e da corte, foram escrevendo suas queixas, acusações e aleivosias pelas paredes do Hospital, que são bastas e branquinhas. Enfim, já se sabe: paredes caiadas… papel de loucos! Loucos ou estudantes que é a mesma cousa e não lhes serve d’emenda as cargas de pancadaria que lhes dão os beleguins e soldados, se adregam caçá-los.


Aqui, deste lado do chafariz onde faz menos ruído, a escritura é outra e arrecebe sua paga. Sentados a umas mesinhas d’armar, há uns homens que ganham dinheiro por pena, escrevendo ofícios, petições, louvores, cartas, mensagens d’amores e versos, tudo aquilo de que as gentes hão mister e lhes vêm ditar e que tantas vezes me tem causado muita risa e outras muito dó, segundo a cor de suas histórias. Aqui, se fazem por escrito tratos de compras e vendas, préstimos de dinheiro ou pagamentos de dívidas e grossas bolsas de moedas d’ ouro ou pedraria mudam de mãos a cada instante, acabando por vezes na sacola d’algum ladrãozeco, com o lídimo[5] dono a bradar, alpavardo[6], “A que d’el-rei”.


Gentes de muitos mundos e de um sem conto de raças, em seus raros trajos e estranhas aravias[7] que só com os línguas[8] se podem entender, causam susto e espanto aos bufarinheiros e almocreves pouco avezados[9] a tais usos e costumes, fazendo muitas vezes fugir as mulheres, desatinadas e em grande grita. Uma cidade sem par, se não fossem os seus maus cheiros e as danadas moscas e moscardos que me entram pela boca e pelas ventas, me atanazam a vida e me hão-de ensandecer. Sacudo-me raivoso e eis que afemenço meu amo…




[1] Ou algibebes, que vendem roupas feitas e baratas. [2] Bate-chapas. [3] Moços de fretes. [4] Piadas, graçolas. [5] Legítimo. [6] Aparvalhado. [7] Línguas árabes, mas também línguas incompreensíveis, desconhecidas. [8] Intérprete. [9] Acostumados.

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