24/11/2010

Memórias de Estalo - Capítulo XI

Na Ribeira

Esmeralda não sabe para onde olhar, com tanta estranheza que vai neste Mundo. Tudo vem dar aos portos de Lisboa e a Ribeira Velha é o melhor lugar para deixar a carga mais rara e o muito fato trazido de longes terras, enquanto se lhe não acha outro destino. Gentes das mais desvairadas raças, cores e trajos cruzam-se no terreiro e na praia, monstros terríveis, em gaiolas de ferro arrancam gritos de pasmo a todos os que se acercam a vê-los. Nomes de bichos fabulosos, como Unicórnio, Tigre, Jaguar, Pantera, Crocodilo ou Girafa correm de boca em boca, assim como os de lugares nunca antes ouvidos: Patane, Narsinga, Chaul, Pegú, Timor, Cantão, Liampo ou Tanegashima!

Esmeralda espanta-se, e zurra, cheia de terror ao ver um grupo de degredados a arrastar as correntes, carreados pelos beleguins para os barcos que os hão-de levar aos Brasis, Áfricas ou Índias, talvez para não mais volverem. Cruzam-se com um carregamento de escravos negros da Guiné, presos uns aos outros com grossos baraços e marcados a ferro em brasa como gado. Cheios de moléstias pela terrível viagem, magros e imundos, olham com assombro e medo o seu novo mundo. São inda menos do que nós!, murmura Esmeralda com dó.

Berros desesperados ouvem-se nos batéis que trazem uma caravana de arábios com seus camelos do deserto que, temerosos de tanta água, espinoteiam com as altíssimas pernas e mordem os matelotes que se lançam ao mar em grande alvoroto. Só a duras penas logram os homens trazer os bestigos para terra, com as corcovas a balançar d’aflição. Que pena tenho de não os poder entender! Quantas cousas me haveriam de dizer de suas terras e aventuras vividas! Ora, com tudo isto, minha doce Esmeralda, o sol está quase a pôr-se e é hora d’ir buscar nosso amo que, como sempre, deve estar de pinguela, a dormir debaixo daquelas árvores.

João do Restelo, como sabe bem do que a casa gasta e que sempre haverá d’acabar o dia bêbado (pois, como dizem os fradinhos Jerónimos escarnefuchando dele, “assi seco como é beberá a torre da sé”), nunca me deixa preso para que eu o possa recolher ao sol-posto e levar a Belém, depois de haver retomado a carrocinha no Hospital de Todos-os-Santos.

Assim, dou aviso a Esmeralda para beber mais um pouco d’água que o caminho é longo e não haverá tempo de paragens. Partimos então a buscar nosso amo e vou carreando com mil cuidados a minha jumentinha, por entre os ajuntamentos e azáfama das gentes que desarmam suas tendas e recolhem os pertences a fim de volver a casa. Um cego tange o seu arrabil e bandos de cachopos, enquanto esperam a ordem de marcha, saltam ao eixo berrando en cantilena desatada: Tonho medronho /Cabeça de conho / Fita amarela/ Rabo de cadela. E as meninas respondem em coro, saltando à corda: Una, duna trêna, condena / Txaca barraca / Catxapiz catxapez / Conta bem que são dez”.

Ora ali jaz nosso amo, como sempre dormindo a bom dormir, soltando grandes silvos e roncos de bácoro regalado. Cães e gatos engalfinham-se pelos restos do apisto que derramaram no chão e o um fedor azedo deixa-me mareado. Sopro-lhe na cara e dou-lhe uns empuxões, ao de leve c’os focinhos, não vá ele despertar de má catadura. Abre os olhos a contragosto e diz tartameleando: “Já é chegada a hora, ‘Stalo? Ora sus, que se faz noute e inda temos d’ir ao Hosprital a ver da carroça! Andor, andor!”

1 comentário:

Jorge Lourenço Goncalves disse...

Tambem eu vou carreando com mil cuidados a minha jumentinha...