24/11/2010

Memórias de Estalo - Capítulo X


O Malcozinhado

O lanço de escadas do Celeiro e da Alfândega, com aquela formosa colunata que se estende até ao mar, abrigam o grande mercado de pescado (o Açougue do Pescado do Concelho) e de doces. Todos os dias aqui vêm muitos peixeiros, hortelãos, confeiteiros, cortadores, padeiros e doceiros a vender o que trazem para alimento da cidade. Nosso amo está bem mais satisfeito, por já lhe ter dado pelas ventas o cheiro do Malcozinhado, um lugar de dez cabanas onde grande soma de homens e mulheres estão de contínuo, com braseiros de fogo, a assar sardinhas e peixe de toda a outra sorte, segundo os chincheiros e linheiros os pescam. Para aí nos leva ele, pressuroso, e nos deixa junto à praia: “Vê lá se me aprontas mais alguma, meu tinhoso, que te vendo na Ribeira hoje mesmo! E toma-me tento na burrica…”

Ah, disso não há mister dar-me aviso, qu’ Esmeralda protejo eu com minha vida e sem sermão encomendado! E lá vai João do Restelo a buscar lugar a uma mesa que já oiço seus brados pedindo de beber, salvado com muita festa de todos os comensais, que só os estrangeiros o não conhecem. Aí comem, à mistura, homens e mulheres, negros e negras, trabalhadores que ganham na Ribeira, estrangeiros que saem dos navios sem destino certo, também estudantes de pouco dinheiro e poetas, como aquele zarolho, ali, de cara repuxada pela cicatriz, que me conhece e me fala sempre com bondade. Ao que dizem, do muito que viajou e sofreu tudo escreveu em poemas qu’ inda hão-de espantar o mundo. Não sei se será verdade, que por ora anda sempre depenado, mas o certo é que me apraz muito ouvi-lo.

O Poeta acerca-se de mim com um sorriso. O sol da tarde, a descer sobre o mar, dá-lhe uma cor de cobre, como se duma medalha se tratasse: “Com que então, Estalo, um novo amor? Espero que não seja um amor louco: tu por ela e ela por outro! Mui graciosa, sem dúvida, tal como uma jumentinha de Presépio!” - e a mão fina e nervosa do poeta guerreiro afaga docemente o pescoço d’Esmeralda que cerra os olhos de prazer. Remexo-me inquieto, de coração apertado. Dizem que mesmo desfigurado o Poeta continua a encantar as fêmeas… “Desejo-te melhor sorte do que a minha, velho amigo. Acaso, serão as jumentitas mais fiéis do que as mulheres…”

Isto foi já dito para duas donas que passavam e riam, mirando o Poeta. A maior delas falou com sanha: “Que quer o Cara-sem-olhos? Melhor fora que se escondera!” A mão do Poeta ficou queda, um instante, no pescoço d’Esmeralda e o seu riso soou triste. Disse rijo para as damas que se afastavam:
“Sem olhos vi o mal claro
Que dos olhos se seguiu,
Pois cara sem olhos viu
Olhos que lhe custam caro.
De olhos não faço menção,
Pois quereis que olhos não sejam:
Vendo-vos, olhos sobejam;
Não vos vendo, olhos não são.”

Elas, rindo, atiram-lhe de longe com um “Sois sempre o mesmo!”. O Poeta dá-me uma palmadita amiga no lombo e diz, amargo: “O mesmo, Estalo, ouviste?! Só por escárnio me podem dizer tal! Uma máscara de causar medo ou horror! Perdigão perdeu a pena, não há mal que lhe não venha! Pois foi assi, meu amigo, num momento perdi a pena de voar e ganhei a pena do tormento… Mas nada de tristezas, meu bom Estalo, pois tu estás namorado, que é como se deve andar no mundo e eu vou beber uma canada à saúde dos vossos amores. Tomai de presente, um torrãozinho de açúcar desse Brasil que eu espero ver um dia!”
E, com a liberalidade de um príncipe, o pobre Poeta botou em nossas bocas um seixito branco da doçura dos deuses.

1 comentário:

Jorge Lourenço Goncalves disse...

Muito a proposito a aparicao do Poeta e a insercao do poema galanteado as donzelas.
E, a proposito, cada qual protege a sua Esmeralda...