18/03/2020

A Criação do Mundo e os Portugueses

Das "Crónicas de Monções e de Marés:  A Criação do Mundo e os Portugueses  
A "professora-sibila" tem uma visão da criação do Mundo e profetiza o papel dos portugueses e dos Descobrimentos nesse Universo.

O FOGO E A ÁGUA

No início…
…as Moiras, ao fiarem desleixadas o destino da Sibila, emaranharam de nós cegos o fio da sua vida. Para sempre preso ao Tudo e ao Nada, o ser da pitonisa nunca encontrou paz ou equilíbrio, mas viveu cada momento com nervos e linfa de mil vidas. 

À medida que o Tempo ia mordendo de sombra os olhos da Sibila, mais clara e profunda se tornava a visão da sua mente. Via agora para além da realidade próxima e, através da opacidade tranquilizadora dos corpos, penetrara nas fráguas e abismos da alma humana. 

A profetiza abrira a caixa de Pandora e chorava a perda da inocência. De si já nada tinha. Como a esponja do mar, absorvera gotas de memória, espumas de sentir, sal de risos e sargaços de agonia. Quando falava, as palavras já não eram as suas, eram vozes roubadas às divindades mortas e a pitonisa sentia como Cassandra o vazio dos seus oragos. 

Amara o mundo e quisera partilhar com ele o dom da sua visão, mas aos olhos dos outros apenas trazia o estigma da loucura que provocava o riso ou a piedade. Ferida, buscara a solidão do mundo das sombras e, da sua descida aos Infernos, a Sibila renascera como um ser crepuscular, cujas visões pressagiavam Dor e Desastre, pois a luz pura de Apolo cedera lugar à chama negra de Hades . 

O Cabo, batido por ventos e marés, ferido no guincho das gaivotas, era o santuário onde, a cada Poente, a Pitonisa recebia o dom pavoroso da Visão. Quando o sol baixava à linha do horizonte, a Vidente fitava sem pestanejar a bola de fogo cada vez mais próxima, até os olhos se lhe incendiarem de dor. 

Cerradas as pálpebras, a negra película da retina explodia num Caos de cores: os ocres, verdes e castanhos de Terra; os vermelhos, laranjas e amarelos de Fogo; os azuis e cinzas de Água; e a insustentável transparência do Ar fundiam-se, para fluir ou refluir em amálgamas de tons e de matérias. A Fénix renascia das cinzas e o Universo tomava forma aos olhos da Sibila. 

Primeiro separavam-se as duas faces das Trevas do Mundo _ Nyx, a Noite e o irmão Érebo, o escuro Mundo dos Infernos. A Pitonisa via a Noite tornar-se côncava, o óvulo primordial fecundado pela força espiritual de Eros, o Amor, para criar Urano, o Céu infinito, e Geia , a Terra geradora de vida. Depois Urano cobriu Geia para nela gerar os seis pares de Titãs, as forças elementares e naturais do Universo. 

O Titã Oceano, a água primordial que rodeia o Mundo, tomou assento a Oriente, no país vermelho das ilhas da Tarde, para lá das Colunas de Hércules, no Mar Roxo ou além do Golfo Pérsico. Uniu-se a Tétis, a caprichosa energia feminina dos mares do Ocidente, vivendo ambos uma relação de tumultos e reconciliações, salvaguardando a ordem do mundo e preparando as rotas dos mares para futuros navegadores. 

A Sibila, no seu transe, viu surgir Hélios, o Sol, Selene, a Lua e Eos, a Aurora para iluminar o caminho dos viajantes, mas também Arges, a luz do relâmpago, Esteropes, as nuvens da tempestade e Brontes , o ronco do trovão, para semear de mistério e terror o esteiro dos navegantes. Depois vieram Zeus, Hades e Posídon e jogaram aos dados a partilha do Universo: para Zeus, senhor do raio que fulmina, ficaram o Olimpo e as zonas celestiais; para Hades, senhor do capacete invisível da Morte, as regiões subterrâneas e o reino dos Mortos; a Posídon, senhor do tridente que abala a terra e as águas, coube o domínio dos Mares. 

Cansados da harmonia do Universo, os deuses divertiram-se a criar os homens. Moldaram uma nova raça de criaturas à sua imagem, mas os bonecos de barro, embora animados, não deixaram de ser bonecos e continuaram de barro e a Sibila estremeceu no horror da sua vivência. Mas Prometeu, o mais generoso dos Titãs, roubou a chama divina do Olimpo e deu-a aos homens para que, no futuro, pudessem desafiar os deuses. E os homens dominaram o Fogo e sentiram-se mais perto do Céu, mas os deuses coléricos com a ousadia infligiram à raça humana os mais terríveis castigos, lançando contra ela a fúria dos elementos. 

Agora a Pitonisa tinha olhos de água e espumas, corpo de areia ao sabor de marés e monções, ouvidos de búzio com gritos de gaivotas e gentes. Arrastada pela força das correntes, estranhava aqueles mares escavados de abismo e remorso. Não havia neles o brilho esmeralda do Egeu, o ónix irisado do Jónico, o safira do Adriático ou o lápis-lazúli do Tirreno. Estes eram turvos e espessos como mosto de sargaços, fechando-se em sudários de tons baços de hematite, ágata sombria ou ametista sangrenta. 

Nuvens de tempestade cegavam mar e terra, ondas erguiam-se como penhascos e os ventos contrários lutavam entre si, esgaçando velas e mastros e as vestes da Sibila. Euros lançava do Este uma bafagem maléfica e doentia contra os tornados e furacões com que Noto, o vento Sul, tentava derrubá-lo e Bóreas estendia do Norte os seus dedos de gelo para estrangular na garganta de Zéfiro, o vento do Oeste, a fúria desatada do seu fôlego. 
A Sibila era um escolho no jogo das monções. Búzios sopravam por sobre as ondas o grito prolongado e lúgubre dos seus avisos e medos ancestrais gelaram o coração da Vidente. A água tinha um sabor a sal e sofrimento, cristais de vidas evaporadas, consumidas em sonhos desfeitos, inquietudes de alma e miragens de Infinito. 

A Vidente deixou-se embeber do espírito das águas, memória líquida dos Oceanos, e chamou a si imagens de Argonautas perdidos, de Ulisses astuciosos, de Eneias buscando uma nova pátria, fábulas imortais de glória e castigo. Mas a Visão trouxe-lhe uma multidão anónima de seres partindo em busca das terras do Sonho, do Prazer e da Fama, para percorrer as rotas do Medo, da Dor e da Morte. 

A Sibila sentia-se impregnar de terrores e heroísmos obscuros, devoções sublimes e paixões mesquinhas, humildes e nobres sacrifícios. Peões miseráveis no Xadrez dos deuses, ao sabor do lance e da jogada, sacrificados ao Rei e à Rainha, movidos no interesse do Bispo, derrubados sob as patas do Cavalo ou esmagados nos assaltos à Torre, deixaram não o nome mas a marca das suas vidas, pelos mundos repartidas em sangue, sémen, suor e lágrimas. 

A Sibila mergulhou mais fundo no abismo do Tempo e recordou… 

Deana Barroqueiro. 1998 

(Em 1998, a minha visão piorou, com o descolamento do vítreo e eu tive de exorcizar o meu terror da cegueira e os meus exorcismo e terapias são sempre a escrita) 

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