30/03/2020

Confinamento nas "Caravelas de Descobrir"

No meu romance "O Navegador da Passagem" - Bartolomeu Dias (há muito esgotado), descrevo um outro tipo de confinamento, o das caravelas e naus de descobrir, as "gaiolas ou prisões do mar", como eram então chamadas, em que se viajava por mares desconhecidos, por vezes quase uma ano, como na odisseia da descoberta do Cabo das Tormentas/Boa Esperança.
Aqui vos deixo a descrição do que acontecia quando chegavam às costas da Guiné, com as calmarias.

 O Navegador da Passagem:

       «O marinheiro gritou a alta voz a saudação da manhã:
       – São oito horas. Deus nos dê os bons dias. Boa viagem faça a caravela, senhor capitão, mestre e toda a companhia. Ámen.
       Os quartos de vela começavam a ressentir-se com as baixas dos marinheiros e grumetes, aquando da rendição às quatro, oito e doze horas, de manhã e em iguais turnos depois do meio-dia, dividindo-se os homens da tarde em dois grupos que alternavam com as noites, tendo cada tripulante e oficial de servir dois quartos de vela de quatro horas cada um. O pessoal que estava de serviço ao nascer do sol, antes de ser rendido, baldeava as pontes com água do mar, tarefa repetida pelo turno das quatro da tarde, e os que vinham mais frescos punham-se à bomba, para escoar a água que nunca secava e acabava por apodrecer, tornando mais intenso o fedor na caravela.
       Na derrota da Guiné, os alísios do nordeste tinham sido substituídos por uns ventos caprichosos e imprevisíveis que assolaram o mar com tornados e ondas altíssimas, sacudindo os três navios como madeiros à deriva, para logo cessarem tão subitamente como haviam começado. Era todavia um sossego enganador, escondendo perigos invisíveis, com a pequena frota a navegar às cegas através de um denso nevoeiro, imobilizando-se por fim numa grande calmaria, quente como fornalha.
       Bartolomeu Dias achava-se já na amurada do lado da proa, quando Pêro de Alenquer surgira na coberta com um matalote que lhe transportava a caixa do astrolábio e fora postar-se junto ao mastro principal a fim de evitar os balanços da caravela enquanto tomava a altura do sol. Sabia que ele preferia executar aquele trabalho em terra onde era possível manter o aparelho imóvel e obter uma medição mais correcta, mas não fariam escala antes de S. Jorge da Mina e o mar com aquela calma parecia um lago de águas mortas.
(...)

Os homens padeciam do mal das calmarias, como lhe anunciara o barbeiro, uns com febres e outros com bostelas pela testa, moléstia frequente naquela costa. Não era difícil que o mal se pegasse aos matalotes de toda a armada, posto que, durante os períodos de imobilidade da frota, os batéis andavam cá e lá entre os três navios para os homens confraternizarem e tomarem algum desenfadamento. Sem demora mandou aviso a todos os oficiais para lhe virem prestar contas das suas dificuldades e necessidades.
       – Na S. Pantaleão – queixou-se João Infante, muito agastado – a água tem gusanos e fede que nem tapando o nariz se adrega a beber.
       – Ao passar a linha, danou-se grande parte dos alimentos – confirmou Diogo. – Andei com o despenseiro a ver dos estragos e tanto as carnes salgadas como as secas estão corruptas, o azeite, a manteiga, a marmelada e o mel fervem como se estivessem ao fogo, de mesmo fermentaram as passas e os figos que levávamos para os enfermos.
       – E o bichedo que ali se cria, por via da corrupção das viandas com esta calma, é tanto que até parece as pragas do Egipto – acrescentou João Álvares, o mestre da naveta das provisões, apoiando o seu capitão.
       – Nós também não vamos mal servido deles – disse mestre João Grego da S. Pantaleão.
        – Nem nós, tão-pouco! – apressou-se a dizer António Leitão, para mostrar que a nau capitânia não gozava de privilégios especiais ou de melhores grumetes. – E com os homens a adoecerem, uns após outros, não podemos fazer a baldeação e lavagem com vinagre do porão, pois não temos assaz de gente com forças para trazer a carga para a ponte.
       Os porões dos três navios, onde se armazenavam os víveres, principalmente o da naveta pela grande quantidade de alimentos que transportava, em nada se distinguiam já da aterradora ideia que os matalotes faziam das profundezas do inferno e cada descida ao bojo das caravelas era um calvário de sofrimento. As fezes e urina dos coelhos, galinhas e carneiros vivos, metidos em gradados e capoeiras, mas também dos homens que, apesar das proibições, bastas vezes ali se aliviavam, empestavam o ar e serviam de viveiros a enxames de piolhos, pulgas, percevejos, baratas e ratazanas.
       – O guardião só à força de castigos e pancada faz entrar lá os grumetes, para alguma limpeza, pois saem cobertos de bichos e infestam o navio.
       – Água, para lavar roupas, conveses ou porões, só a do mar, mestre Leitão – recomendou Bartolomeu Dias. – Mesmo corrupta, não se pode desperdiçar, pois não sabemos quando chegaremos à Mina para a aguada. »

 Nota: O quarto da alva, das quatro às oito da manhã.
(O Navegador da Passagem - Deana Barroqueiro)

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