A vida dos outros
ponto final, 5 de fevereiro 2014
Durante o Ano Novo Lunar, Pequim ficou vazia quando comboios partiram, aviões levantaram voo e carros fizeram-se à estrada. No bairro de Babaoshan, a oeste da cidade, ficaram os migrantes que não puderam viajar.
Catarina Domingues, em Pequim
A tabacaria
Parecem bandos de pardais à solta, os miúdos, a lançar bombinhas à frente da tabacaria do pai. O governo avisou, este ano é para poupar no fogo-de-artifício, e assim poupar o ambiente. Mas os fogos afastam os maus espíritos, e a má sorte, e é tradição. Aqui em Babaoshan, a luta do governo parece inglória. O ar conserva um cheiro acre a enxofre.
“As crianças não vivem sem isso, é uma tradição com mais de mil anos, não se pode alterar nem pode desaparecer”, diz Yu Jiangtao, dono da tabacaria Guohua Dukang.
E o barulho das pequenas explosões sempre alivia a saudade da aldeia, lá para os subúrbios de Zhoukou, na província de Henan. “Aqui não conhecemos ninguém. Na aldeia, temos o calor da família, as pessoas saem todas à rua para festejar”, explica.
Mas negócio é negócio, e Yu tem as prateleiras vermelhas repletas de vinho de arroz e volumes de tabaco. O ano novo é boa altura para despachar as mercadorias. “Agora só regresso a casa para as colheitas de Outono.”
A semana de festa não tem sido bem de festa, diz. E nota-se indiferença no tom. “Estou um ano mais velho, acho que é tudo”. Yu até comprou enfeites para a loja, mas já não sabe por onde andam.
De que é que sente mais falta? “Dos meus pais, já telefonei a desejar tudo de bom”. E logo os olhos de Yu parecem não querer aguentar. Conta como chegou com a mulher a Pequim há quinze anos. Eram trabalhadores migrantes (são cerca de sete milhões em Pequim) e foi aqui que começou uma nova vida. Tiveram dois filhos e apostaram no tabaco. “É um bom negócio, apesar da proibição de fumar em muitos sítios”.
Yu espera a reforma para regressar à terra. A filha, Yu Xiao Xiao, diz que quer ficar em Pequim. E volta a concentrar-se no computador.
Os Yu fizeram da tabacaria, casa. Dormem ali atrás de uma cortina e de um pequeno altar, um espaço exíguo, um esconderijo. Yu quer mais dinheiro para o ano do cavalo. “Para a próxima, a festa é na aldeia.”
O salão de beleza
Ninguém está no salão de beleza do supermercado Huapu. Um grande aquário com dois peixes, que se distraem de um lado para o outro, o mais pequeno colado à barbatana do maior. Uma tartaruga tenta trepar as paredes de vidro, mas sem conseguir alcançar a superfície.
Ao longe, as três mulheres gritam e riem alto, enquanto aproveitam a hora vaga para cuidar das próprias unhas; cor vermelha, pequenas impressões prateadas, outras douradas, para combinar com a Festa da Primavera.
Ninguém daria a Li Yuan Jie trinta anos. Parece uma miúda, pernas finas, e longas, e a felicidade de um novo verniz.
Ao longo desta semana, trabalha onze horas por dia. Arranja as mãos e os pés para as festas do Ano Novo Lunar. “Nesta altura faz-se mais dinheiro e na minha terra natal tenho dois filhos para alimentar e contas para pagar”.
Li é de Zhengzhou, província de Henan, e vai a casa duas vezes por ano. Foi aí que o marido e os dois filhos – de onze e nove anos – ficaram quando, há sete anos, se aventurou pela grande cidade.
Em Pequim, o que interessa é o trabalho, mais nada. Tem amigas, “mas não são bem amigas, são só colegas de trabalho”. A passagem de ano foi sozinha. “Com quem mais? Comprei ‘jiaozi’ (dumplings), fruta fresca, e fiquei presa ao telemóvel a enviar mensagens para a família”.
Li ainda espreitou a gala da CCTV, que chega às televisões chinesas desde 1983 e já se tornou numa tradição da noite de ano novo. Mas nem as acrobacias, nem os truques de magia entretiveram a esteticista. “Não gostei do ambiente, pus-me a jogar ao telemóvel.”
Agora resta esperar mais um pouco. Quando Li voltar a casa, estão milhões de chineses a regressar a Pequim.
A agência funerária
Liu Bingchen não gosta de carne e só cozinha ‘jiaozi’ vegetarianos. “Na China, na passagem de ano, sejas pobre ou sejas rico, vais comer ‘jiaozi’”. Os dumplings são uma tradição milenar com origem no norte do país. Comem-se entre a última hora do ano e a primeira hora do novo calendário lunar. Uma moeda lá dentro pode significar sorte e fortuna na vida, assegura a tradição.
Liu tem 59 anos e diz que não precisa de fortuna, nem de sorte, diz que está contente com o governo, com a pensão que recebe, e com a pequena agência funerária que abriu há doze anos (começava então o ano do cavalo). “Abri o negócio para ter uma ocupação.”
Vai passeando de um lado da loja para o outro, passa a tarde a bebericar um chá Longjing, a brincar com duas nozes na mão esquerda. “Faz bem à circulação”, garante. E depois senta-se, e volta ao chá, e dá tempo à caligrafia chinesa. “A caligrafia educa uma pessoa, pode torná-la mais culta, obriga a treinar o cérebro”, explica.
Durante a Festa da Primavera, a agência não fechou as portas. Porque a morte também sai à rua num dia assim, de festa. “Alguém tem de fazer este trabalho, eu trato de tudo, compro a roupa, o caixão, vendo dinheiro falso para queimar. No Ocidente é a igreja que faz este serviço, aqui sou eu”, nota Liu, oriundo de Pequim.
O ano novo é feliz, porque “fui lançar fogos e depois fui dormir”, mas solitário, “a minha mulher está no céu, os meus filhos já são crescidos e têm a sua vida”.
E o que espera do ano do cavalo? “Saúde é o mais importante. Há pessoas que querem enriquecer, mas a verdadeira riqueza está aqui”. E leva o indicador à cabeça.
TRADIÇÕES DO ANO NOVO LUNAR
Dança do Dragão
Tradição antiga, que se tem desenvolvido ao longo dos anos e que é mais comum entre as comunidades rurais da China. Segundo a crença chinesa, a dança atrai prosperidade, sorte e renovação.
Fogo-de-artifício
Os chineses lançam fogo-de-artifício e rebentam bombinhas para espantar os maus espíritos. Acredita-se que todos aqueles que o fazem vão ter sorte ao longo do ano.
Hong Bao/ Lai Si
Envelopes vermelhos com dinheiro lá dentro. Tradicionalmente é oferecido por adultos aos mais jovens. Acredita-se que o dinheiro vai proteger as crianças dos maus espíritos, trazer saúde e longa vida.
Jiaozi (dumplings)
Diz-se que os jiaozi foram cozinhados pela primeira vez há 1600 anos e são obrigatórios à mesa dos chineses na noite de passagem de ano. Em certas áreas adiciona-se um pouco de açúcar, o que pode simbolizar uma vida mais doce. Também podem ser colocadas moedas no interior. Quem comer este dumpling, pode contar com fortuna e sorte.
Limpeza
Uns dias antes das celebrações do Ano Novo Lunar, é feita uma limpeza às casas para eliminar as energias velhas e renová-las. A limpeza deve ter início antes do nascer-do-sol e terminar antes do pôr-do-sol.
Decoração
Depois da limpeza, as casas são decoradas com lanternas vermelhas, desenhos recortados em papel e enfeites à porta de entrada como forma de dar as boas-vindas ao novo ano.
Feiras
Durante estes dias, feiras vão abrir as portas para vender tudo o que é necessário para o Ano Novo Lunar. Fogo-de-artifício, enfeites, comida e artesanato são alguns dos produtos disponíveis. Os mercados são também palco de actuações e costumam estar decorados com grandes lanternas vermelhas.
Shou Sui
Shou Sui significa ‘ficar acordado até tarde na passagem de ano’. Diz a lenda que um monstro mítico chamado ‘Nian’ (Ano) saía à rua para caçar animais e pessoas. Por ser sensível a ruídos e à cor vermelha, os chineses começaram a decorar as casas de vermelho e a lançar fogo-de-artifício. As pessoas ficam acordadas até tarde para fazer frente ao ‘Nian’.
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