09/03/2010

Das Mulheres no Velho Testamento

No rescaldo do Dia da Mulher, lembrei-me de uma das numerosas "histórias exemplares" do Velho Testamento que serviram de base aos meus contos, que tenho estado a refazer para uma nova edição. É muito significativo da condição da mulher, ainda nos nossos dias (como a violência doméstica e o número de mulheres mortas pelos companheiros), ver como nesta parábola é aceite como coisa natural o crime hediondo contra uma mulher indefesa e inocente, que o próprio marido entrega aos algozes para salvar a pele. Passa-se em Gabaa, com a mulher de um levita, hospedado na casa de Ard.

"Enquanto restauravam as suas forças, comendo e bebendo, vieram os habitantes da cidade, gente péssima, e, cercando a casa do velho, bateram violentamente à porta, dizendo:
- Traze cá para fora o homem que entrou na tua casa, pois queremos abusar dele.
Ard saiu e foi ter com eles, dizendo:
- Não queirais, irmãos, cometer semelhante maldade, pois este homem é hóspede da minha casa. Não pratiqueis semelhante infâmia. Aqui está a minha filha virgem e a mulher deste homem. Eu vo-las trarei, e vós podereis fazer delas o que quiserdes; somente vos peço que não cometais contra este homem esse crime contra a natureza.

Eles, porém, não o quiseram ouvir. Então o levita, vendo isto, trouxe-lhes a sua mulher: eles conheceram-na e abusaram dela durante toda a noite e despediram-na ao amanhecer. Ao romper do dia, veio a mulher à porta da casa onde estava o seu marido e caiu morta.

Chegada a manhã, levantou-se o marido e, ao abrir a porta para continuar o seu caminho, eis que a sua mulher jazia diante da porta, com as mãos estendidas sobre a soleira. Julgando-a adormecida, disse-lhe:
- Levanta-te e vamos.
Mas a mulher não lhe respondeu. Tomou-a, então, pô-la sobre o jumento e regressou à sua casa.

Chegando à sua casa, tomou o cutelo, dividiu o cadáver da sua mulher, membro por membro, em doze partes, e enviou-as a todas as tribos de Israel."

(in "Bíblia Sagrada" - Nova edição papal, traduzida das línguas originais, com uso crítico de todas as fontes Antigas, pelos Missionários Capuchinhos).

Ora, nem nesta Bíblia, comentada numa auto-declarada visão crítica, surge a mais leve censura ao crime feito à mulher ou aos dois homens que a sacrificaram, nem sequer pela profanação do cadáver, esquartejado e enviado às tribos de Israel para pedir vingança, não pela morte da mulher mas apenas pela ofensa feita ao marido.

O coração dos Missionários Capuchinhos nem sequer se comoveu com a imagem da mulher caída no chão, com as mãos estendidas para a soleira da porta numa súplica vã, no seu comentário só é referida a "baixeza moral" dos benjamitas, pelo pecado da sodomia.
Este episódio é uma repetição da história de Lot, com idêntica "moralidade", esta com a agravante de justificar o incesto de Lot com as duas filhas.

Como já referi, neste blogue, pretendo com os meus contos, denunciar essa tradição da condição da mulher, desprezada, aviltada, usada pelos homens como objecto de compra e venda, inferior ao gado dos seus rebanhos, e como animal de procriação, veiculada nos ditos livros sagrados das três religiões principais e de que, mesmo no Século XXI, a mulher ainda continua a ser vítima, em nome de Deus, com afrontoso despudor e impunidade, sobretudo nos países muçulmanos.

6 comentários:

M. disse...

Eu ainda não li a Bíblia toda, mas li essa parte há algum tempo e também fiquei abismada. É claro que é um texto muito antigo, mas não faltam exemplos actuais de como a mulher continua a ser menosprezada, desprezada, usada, etc.
Bjs,
M.

DEANA BARROQUEIRO disse...

São às dezenas estes "bons exemplos", criados para justificar os vícios dos velhos que se passeiam pelos livros do Antigo testamento. Deu-me matéria para escrever 19 contos e ainda havia para muitos mais.

A mulher é sempre estéril, portanto, deve levar consigo para o casamento escravas para servirem de concubinas ao marido, se não quiser que ele a expulse. É vendida ou oferecida, sem poder recusar, como pagamento de dívidas feitas pelo pai ou marido.

As esposas não podem abandonar os maridos mesmo que sejam espancadas e aviltadas continuamente, porém, os maridos podem divorciar-se e expulsá-las a seu belo prazer, sem motivo ou por capricho.

Pela lei do levirato, quando ficam viúvas são obrigadas a casar com o irmão, o sogro ou outro parente qualquer, paraficarem "protegidas".
Incesto, violação, adultério são o pão-nosso-de-cada-dia (para usar a linguagem bíblica). Os homens são aconselhados a bater e a punir as mulheres, para as meterem na ordem.

Os livros do Antigo Testamento são a base comum ao Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, trouxeram uma pesadíssima tradição de sujeição e aviltamento das mulheres, contra a qual eu sempre me baterei e de que as personagens dos meus contos dão o testemunho, pela primeira vez em Literatura, sob o ponte de vista da mulher e do seu sofrimento.

ANGELA disse...

Já foram ver Precious?...

Zé Nuno disse...

Por princípio, sou contra todo e qualquer dia que sirva para assinalar seja o que for: a mulher, o pai, o filho (ou o espírito santo, para continuar na cena bíblica).

Nem sou sócio de nenhum clube, desportivo ou outro (defino-me como simpatizante inflamado de muitos clubes), por não querer, como alguém disse, ser sócio de um clube que aceite como sócio gente como eu... :)

A teoria todas as pessoas a sabem ou conhecem (ou deviam saber ou conhecer), mas praticá-la é que é mais difícil. O ensurdecedor silêncio sobre muitas coisas relacionadas com este assunto faz-nos pensar se evoluímos assim tanto desde os tempos antigos.

Anónimo disse...

Cristo veio contrariar precisamente essa visão da mulher.Veja-se como ele tratou a adúltera (p. ex.)
A herança era, de facto tão pesada que, permaneceu durante séculos.
E hoje?

DEANA BARROQUEIRO disse...

Para "anónimo"

Por isso só escrevi sobre o Antigo Testamento e várias vezes falei da diferença em relação a Cristo. Embora não sendo crente, considero que Cristo trouxe uma lufada de ar fresco, de humanidade e modernidade às religiões anteriores (por isso foi crucificado!).
Se a Igreja não tivesse desvirtuado tanto e durante tanto tempo (e ainda o faz), os princípios pregados por Cristo, talvez vivêssemos num mundo melhor.

Obrigada pela sua participação.