Hui! Como João do Restelo vem em boa companha! Que fêmeazinha de estalo traz ele consigo, capaz de fazer perder o siso ao mais sisudo! Um longo pescoço, delicado e nervoso, com gentil e formosa cabeça de finas orelhas móvedas[1]. E aqueles olhos negros?! Só de judia ou moura encantada, assi grandes e misteriosos, bordeados de pestanas assedadas[2] e bastas! Formas airosas e cheias, de músculos ágeis a aperceberem-se sob uma pele firme e macia. E, por minha fé, pese embora os anos que já cá cantam, que nunca vi pernas mais guapas (como dizem os meus amigos galegos)! Delgadas, das sapatas té aos joelhos de ossinhos delicados e salientes quanto baste, cobertos de um pelinho ruço e aveludado como o terciopelo da opa de um fidalgo, a terminar numas soberbas pospernas[3], de fazer perder o tino a um velho sábio, quanto mais a mi, que não passo dum pobre diabo, um bestigo de d’almocreve de convento!
Sinto as mãos de João do Restelo no meu pescoço e a sua voz amiga acalmando-me: “Então, Estalo, assossega! Que bicho te mordeu, home, para t’amostrares assi tavanés[6]e armando uma tal zacapela[7]?” Aquieto-me, por fim, tremendo e resfolgando, como tomado de quartãs, enquanto meu amo m’alimpa o suor com um trapo e as gentes, recobradas do susto, m’empipinam[8] sem dó nem piedade: “Abrenúncio, tiozinho, qu’o sendeiro é perigoso!”; “Foi o cheiro da burrica, meu bestigo, que te fez entortegar[9]?” lança o azemel[10] numa risota despegada e uma velha grita inda toda abrasiada: “Tomai tento no bicho, que é fagueiro[11], não arme ele mais escândola!” Meu amo vai pondo água na fervura: “Também não há razão para tamanho alvoroto, dona, que o bicho não quebrou nada…”, e logo, de um salto, se escarrancha nos meus lombos (pois que a carrocinha ficou no Hospital) e, prendendo pelo baracinho a preciosa e assustada burrinha ao meu atafal, arrasta-nos dali para fora, a bom trote, caminho da Ribeira.
Empachado[12]e cheio de merencória[13], mal atino com as ruas pejadas de gente, fazendo seus tratos e parando para ver as foliadas dos ranchos que cantam e dançam, sem que os moleste a lama mal cheirosa que tudo cobre, onde as minhas çapatas se enterram té aos artelhos, fazendo-me escorregar e sacudir a meu amo que me cobre de maldições, ao mesmo tempo que vigia e anima a Rucinha: “Chax, Esmeralda! Uxte, menina!” E ela, assustada com o arroído, vem colar-se à minha posperna, acendendo-me de paixão.
Notas da Autora:
A primeira ilustração do almocreve com o burro parece banda desenhada, mas é uma ilustração de um livro do Século XV.
[1] Móveis.
[2] Macias como seda.
[3] Parte superior das pernas de um animal.
[4] Tresmalhadas.
[5] Uxte e uxtix – termos onomatopeicos usados pelos arrieiros de Gil Vicente para os burros.
[6] Turbulento, doidivanas.
[7] Contenda com ruído, barulho.
[8] Vexar com ditos.
[9] Torcer com violência.
[10] O que guia azémolas, almocreve.
[11] Traiçoeiro.
[12] Embaraçado.
[13] Melancolia, tristeza.
2 comentários:
Divertidíssimo! Tenho que guardar este dicionário que aqui nos tem deixado. Quem sabe se daqui a uns tempos não o irei utilizar num teatrinho com os netos.
Beijinhos
Força para as Avosices! Obrigada, Ofélia. Beijinhos.
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