Enquanto espero meu amo, vou respirando regalado os bons ares destas ricas lavras de cheirosos frutos e bebo uma pouca d’água fresca no Poço da cerca da Esperança. Não é de espantar que tantas casas de gentes-d’algo se hajam começado a alevantar por estas partes, que seus donos mais não desejam que fugir os ares corruptos das pestes e das sujidades e maus cheiros da cidade, causadores de todas as pragas de rataria, mosquedo, piolhedo e demais bichedo.
Depois da carga aviada, de muitas sombreiradas e outros tantos “Deus vos guarde, minhas santinhas”, de meu amo às boas freirinhas da Esperança, que nos lançam muitas bênçãos de “Ide-vos muito embora, João do Restelo!” e “Que o Senhor vá em vossa companha!” e também: “Olhai, que não vos olvide as cartas para o Prior e para os nossos bons irmãozinhos Jerónimos!”, volvemos à estrada que nos vai levar às Portas de Santa Catarina.
Prestes se faz sentir o cheiro endemoninhado do Poço dos Negros, uma cava ou tranqueira para onde lançam os corpos dos escravos negros que se finaram sem ser baptizados e não têm direito a ser enterrados em chão sagrado. Triste destino, o destas pobres gentes, arrecebendo pior tratamento que perro ou sendeiro, salvo seja! E como a vala está tão cheia que só a muito custo logram cobrir os corpos dos negros, El-Rei ordenou de se abrir outra, aí mais arriba, à qual deram o nome de Poço Novo. Meu amo cobre os narizes e a boca com um suadeiro, mas eu, que o não posso fazer, vou de ventas ao léu e arrecebo em plenos focinhos um fedor tão abominável que me revolve as tripas e me traz amargos à boca e tremeduras de sezões.
Respiro por ambas as ventas, todo consolado, o ar perfumado destas hortas de semeadura, vinhas e olivais, agora pertença da família Atouguia[4] que as comprou, a dez réis de mel coado, ao riquíssimo astrólogo d’El-Rei D. João II, o judeu Guedelha Palaçano, que de tudo se desfez para poder escapar à Santa Inquisição. O mesmo destino levaram suas herdades do Aterro, da Boa Vista, da Esperança e de S. Bento, que disto muito falam os freires Jerónimos, assaz satisfeitos em ver perseguido a um inimigo de Cristo, para mais enriquecido à conta de feitiços e enganos feitos a bons cristãos.
Vêem-se algumas casinhas, cerca da ermida de Santo António[5] que servem de morada a capitães, mestres, calafates, tudo gente do mar que fez dinheiro no Brasil ou na Índia e tem vindo a subir da Boa Vista para o alto, té à Torre d’Álvaro Paes e sua Porta de S. Roque na muralha d’El-Rei D. Fernando, a 200 passos do Convento da Trindade onde está a Inquisição. Neste cômoro[6] de olivais, depois da peste de 1506, fez-se um grande cemitério com nova ermida a S. Roque, o bom padroeiro dos padecentes da terrível trama[7], a qual está agora a cargo dos Padres da Companhia de Jesus[8].
Pela porta de S. Roque, ou do Condestabre[9] – pois foi Nun’Álvares Pereira quem comprou aos frades da Trindade o olival de baixo para aí fazer o belo Convento do Carmo – passamos a primeira cerca da cidade, sendo meu amo mui bem saudado por um seu primo besteiro, que é guarda da porta e nunca lhe cobra dinheiro da portagem. Do cimo do cômoro afemenço o Rossio com o Paço dos Estaus, a Igreja de S. Domingos e o magnífico Hospital de Todos os Santos que é a cousa mais digna de ser vista na nossa cidade. “Andor, andor, mangano, que se faz tarde! Mal pecado! Que tens tu, que não te mexes?!” Mau grado a grita de meu amo ( sou entirrado como uma mula e faço tão só o que me dá na real gana! ), atardo-me inda um pouco a mirar o precioso coração de Lisboa.Notas:
[1] Urbanização das terras de Bartolomeu de Andrade.
[2] Perdeste o siso; endoidaste.
[3] Estouvado, sem tino, doidivanas.
[4] Outra fonte apresenta D. Luís de Ataíde como comprador das quintas.
[5] Ermida dos finais do sec. XV, onde hoje está a Igreja do Loreto.
[6] Talvez na actual Calçada do Combro.
[7] Peste.
[8] Em 1553, no tempo de D. João III, no lugar onde mais tarde será construída a Igreja de S. Roque.
[9] Condestável.
2 comentários:
Maria-Fernanda Pinto escreveu no Facebook:
Deana,tou danada! fui ler Memórias de Estalo, na Conversa com os leitores, adorei e fiz perguntas ... fez fuiiiitttt! e desapareceu! Claro que sou uma naba nestas coisas, mas é o cumulo da "falta de respeito"! Atão nã desapareceu tudo?!!!
Queria saber o nome do animal cheio de personalidade que descreve tão bem o que v...ê.... jinhos. n.
11/10 às 23:49
hum...ando perto? O Manuel Sousa Fonseca é, diz que quando um burro é vivo e inteligente conta por um cavalo...
14/10 às 23:28
Foste a primeira a participar no jogo, querida Nanda! Em breve virá a revelação pelo próprio narrador.
Enviar um comentário