11/10/2010

Memórias de Estalo - Capítulo III

DA ESPERANÇA A SANTA CATARINA

Com estas remembranças nem dei pela subida empedrada e retorcida junto ao Cruzeiro da Esperança que nos leva do Paço do Duque de Aveiro ao arejado outeiro do Convento de Nossa Senhora da Piedade de Boa Vista, mais conhecido por Santa Maria da Esperança. Casa religiosa de franciscanas, de mui simples aparência, mas mui rica paredes adentro, foi fundada há bem pouco tempo por D. Isabel de Mendanha para aí albergar algumas donas nobres anojadas do mundo e donzelas de bom nome e minguado dote. Aqui há-de meu amo deixar muitos e bons recados dos nossos fradinhos Jerónimos para as dedicadas irmãs e arreceber grande soma de produtos de seus belos vergéis, hortas e vinhas – uma generosa oferenda para levar ao Hospital de Todos os Santos.

Enquanto espero meu amo, vou respirando regalado os bons ares destas ricas lavras de cheirosos frutos e bebo uma pouca d’água fresca no Poço da cerca da Esperança. Não é de espantar que tantas casas de gentes-d’algo se hajam começado a alevantar por estas partes, que seus donos mais não desejam que fugir os ares corruptos das pestes e das sujidades e maus cheiros da cidade, causadores de todas as pragas de rataria, mosquedo, piolhedo e demais bichedo.

Depois da carga aviada, de muitas sombreiradas e outros tantos “Deus vos guarde, minhas santinhas”, de meu amo às boas freirinhas da Esperança, que nos lançam muitas bênçãos de “Ide-vos muito embora, João do Restelo!” e “Que o Senhor vá em vossa companha!” e também: “Olhai, que não vos olvide as cartas para o Prior e para os nossos bons irmãozinhos Jerónimos!”, volvemos à estrada que nos vai levar às Portas de Santa Catarina.

Prestes se faz sentir o cheiro endemoninhado do Poço dos Negros, uma cava ou tranqueira para onde lançam os corpos dos escravos negros que se finaram sem ser baptizados e não têm direito a ser enterrados em chão sagrado. Triste destino, o destas pobres gentes, arrecebendo pior tratamento que perro ou sendeiro, salvo seja! E como a vala está tão cheia que só a muito custo logram cobrir os corpos dos negros, El-Rei ordenou de se abrir outra, aí mais arriba, à qual deram o nome de Poço Novo. Meu amo cobre os narizes e a boca com um suadeiro, mas eu, que o não posso fazer, vou de ventas ao léu e arrecebo em plenos focinhos um fedor tão abominável que me revolve as tripas e me traz amargos à boca e tremeduras de sezões.

Mareado de morte, lanço-me em carreira desenfreada, sem atender aos brados do meu amo, e só paro lá bem no alto, à entrada da Vila Nova de Andrade[1]. “Pardeos, Estalo, ervilhaste[2]?! Que bicho te mordeu, zamguizarro[3], pra assim me deitares a perder?” grita João do Restelo inda mal recobrado do susto e todo em sanha: “Não tardas em levar umas trochadas nesse lombo, para teres tento no serviço”. Encolho-me à passagem do varapau, que me zune rente às orelhas, mas meu amo parece contentar-se só com o ameaço e eu posso apreciar à minha guisa o quão fresca e airosinha é esta novíssima Vila, cercada pelas ricas herdades de Santa Catarina, Moinhos de Vento e S. Roque.

Respiro por ambas as ventas, todo consolado, o ar perfumado destas hortas de semeadura, vinhas e olivais, agora pertença da família Atouguia[4] que as comprou, a dez réis de mel coado, ao riquíssimo astrólogo d’El-Rei D. João II, o judeu Guedelha Palaçano, que de tudo se desfez para poder escapar à Santa Inquisição. O mesmo destino levaram suas herdades do Aterro, da Boa Vista, da Esperança e de S. Bento, que disto muito falam os freires Jerónimos, assaz satisfeitos em ver perseguido a um inimigo de Cristo, para mais enriquecido à conta de feitiços e enganos feitos a bons cristãos.

Vêem-se algumas casinhas, cerca da ermida de Santo António[5] que servem de morada a capitães, mestres, calafates, tudo gente do mar que fez dinheiro no Brasil ou na Índia e tem vindo a subir da Boa Vista para o alto, té à Torre d’Álvaro Paes e sua Porta de S. Roque na muralha d’El-Rei D. Fernando, a 200 passos do Convento da Trindade onde está a Inquisição. Neste cômoro[6] de olivais, depois da peste de 1506, fez-se um grande cemitério com nova ermida a S. Roque, o bom padroeiro dos padecentes da terrível trama[7], a qual está agora a cargo dos Padres da Companhia de Jesus[8].

Pela porta de S. Roque, ou do Condestabre[9] – pois foi Nun’Álvares Pereira quem comprou aos frades da Trindade o olival de baixo para aí fazer o belo Convento do Carmo – passamos a primeira cerca da cidade, sendo meu amo mui bem saudado por um seu primo besteiro, que é guarda da porta e nunca lhe cobra dinheiro da portagem. Do cimo do cômoro afemenço o Rossio com o Paço dos Estaus, a Igreja de S. Domingos e o magnífico Hospital de Todos os Santos que é a cousa mais digna de ser vista na nossa cidade. “Andor, andor, mangano, que se faz tarde! Mal pecado! Que tens tu, que não te mexes?!” Mau grado a grita de meu amo ( sou entirrado como uma mula e faço tão só o que me dá na real gana! ), atardo-me inda um pouco a mirar o precioso coração de Lisboa.

Notas:
[1] Urbanização das terras de Bartolomeu de Andrade.
[2] Perdeste o siso; endoidaste.
[3] Estouvado, sem tino, doidivanas.
[4] Outra fonte apresenta D. Luís de Ataíde como comprador das quintas.
[5] Ermida dos finais do sec. XV, onde hoje está a Igreja do Loreto.
[6] Talvez na actual Calçada do Combro.
[7] Peste.
[8] Em 1553, no tempo de D. João III, no lugar onde mais tarde será construída a Igreja de S. Roque.
[9] Condestável.

2 comentários:

DEANA BARROQUEIRO disse...

Maria-Fernanda Pinto escreveu no Facebook:

Deana,tou danada! fui ler Memórias de Estalo, na Conversa com os leitores, adorei e fiz perguntas ... fez fuiiiitttt! e desapareceu! Claro que sou uma naba nestas coisas, mas é o cumulo da "falta de respeito"! Atão nã desapareceu tudo?!!!
Queria saber o nome do animal cheio de personalidade que descreve tão bem o que v...ê.... jinhos. n.
11/10 às 23:49

hum...ando perto? O Manuel Sousa Fonseca é, diz que quando um burro é vivo e inteligente conta por um cavalo...
14/10 às 23:28

DEANA BARROQUEIRO disse...

Foste a primeira a participar no jogo, querida Nanda! Em breve virá a revelação pelo próprio narrador.