Vista assim do alto, sem maus cheiros que nos apoquentem, é uma cidade de sonho, iluminada a azul, branco e oiro, com suas desvairadas colinas a imitarem a curva ondeada das marés. Do outro lado do vale, a Mouraria e a Judiaria derramam pela encosta do Castelo a espuma do seu casario branco e cerrado, a fervilhar de vida e de gentes de estranhos trajos e costumes. Lisboa mede três mil e cem passos de comprido, mil e quinhentos de largo e de cerco em roda sete mil passos, sendo toda edificada em lugares altos e baixos, de tal feição que nunca a podemos ver toda duma parte. Do lado do mar tem vinte e duas portas e da parte de terra dezasseis, contando por todo o muro alrededor setenta e sete torres…
“Ai, não queres trabalhar, meu tinhoso? Vilão forte, pé dormente, já lá dizia meu padre! Hei-de deixar-te uns dias em jejum, a ver se ficas mais ligeiro”. Desta vez a ponta do chicote morde-me as costelas, a mostrar que meu amo está prestes a perder as estribeiras e a prudência aconselha-me a obedecer: Quem quer fogo busque a lenha, porém eu já não tenho idade para guerras nem revoltas. Lanço-me num passo trigoso encosta abaixo, para o Rossio, embora com cautela, não vão as çapatas escorregar no esterco do caminho. Apesar das mil negras que andam pela cidade com suas canastras a alimpar as ruas, o lixo parece não ter fim, por serem tantas as gentes e as alimárias de transporte, bem como rebanhos de cabras e ovelhas, perros, gatos, porcos, patos e galinhas, todos fazendo seus feitos onde lhes dá a gana. Mea culpa… té eu já me tenho aliviado, embora a contra gosto!
Dos lados do monte de Santa Ana, vem o fedor do açougue duma praça onde se mata e esfola o gado que pasta na encosta e se corta a carniça para vender na cidade. Por aqui já é basto o mosquedo a atazanar homens e bestas, té parece a Rua de Mata Porcos! Pardeus, como as moscas me fazem raivar! Dou-me pressa d’avançar que o Rossio é lá ao fundo e já se ouvem os pregões de “Água fresca! Água fresquinha!” das negras aguadeiras que são mais de mil, vendendo água ao pote e quartas, por toda a cidade. Muitos outros pregões se soltam, a despertar Lisboa do seu sono, cantigas de mulheres cativas e forras a oferecer pelas ruas e às portas das casas, em panelas grandes e muito limpas, aletria, arroz doce e marmelada, frutas secas, cozidas ou frescas. Assim que os meninos as ouvem, se alevantam da cama chorando por dinheiro a seus padres e madres (menos mal que é isso por vezes seus almoços, que pobreza e alegria nunca dormem numa cama). Outras muitas vendem toda a sorte de viandas, peixe e marisco: cuscuz e chícharos , camarões, berbigões e caramujos , cousas tidas em muito apreço pelas gentes da cidade, que tudo compram, pese ieramá a carestia da vida.
Desemboco por fim no Rossio, passado um pouco já do galante Paço dos Estaus, mandado fazer pelo Infante D. Pedro, filho d’El-Rei D. João I, para dar pousada e gasalhado aos príncipes e embaixadores que vêm a Lisboa. Contra o Oriente, está a Igreja de Nossa Senhora da Escada e o Mosteiro de S. Domingos, logo seguido do sumptuoso Hospital de Todos-os-Santos, o nosso destino. O Rossio é um formigueiro de gente, por ser hoje terça-feira – dia da grande Feira da cidade – e só a muito custo rompemos por entre a multidão, seguindo para as arcadas do Hospital onde, depois de deixar a carga à porta das cozinhas, vou poder finalmente beber água do Chafariz, comer alguma cousita e descansar desta minha trabalhosa viagem.
Nota da autora: Ainda não descobriram quem é o narrador? Até agora só Maria Fernanda Pinto andou por perto... quase a chegar lá . Ninguém mais quer dar um palpite?
7 comentários:
Parece-me ser este narrador bicho de quatro patas, jumento ou mulo, cavalo não, que não o carregaria assim seu amo.
Bom observador e narrador competente, está a dar-nos uma belíssima crónica de Lisboa quinhentista. Parabéns!
Mª José Guedes
Obrigada, Maria José, pela participação e pelo elogio.
Peço-lhe desculpa, mas ainda não lhe vou dizer se acertou ou não na identidade do narrador. Ainda faltam três capítulos para a revelação...
Vamos manter este contacto, está bem?
Ofélia das Avosices, anda por aí? Ainda não descobriu o narrador? Estou com saudades das suas mensagens!
Um beijo.
Olá Deana
Venho cá todos os dias e estou deliciada com estas "memórias" e com as imagens e cheiros de Lisboa. Em relação à identidade do narrador, depois da Zé falar no burrico...
beijinhos
Ofélia
Ps: já fiz as broas de mel que ficaram uma delícia
Obrigada, minha amiga! Já tinha saudades suas.
As broas são de facto uma delícia, uma preciosidade daquela região. Adoro comê-las quentes.
Um grande beijo.
Li, de um folego, os quatro episodios das "Memorias de Estalo" .
Imaginativo o estratagema de por um jumento ou um mulo a servir de narrador para nos dar a conhecer esta cidade de Lisboa, nas palavras da epoca!
Qualidade com a sua habitual chancela de autora de romances historicos. Parabens.
Vou estar atento aos proximos capitulos...
Fico-lhe muito grata, Jorge Gonçalves, pelo seu comentário tão gentil. Espero poder fazer-lhe a vontade e pôr esta madrugada mais um capítulo. Torna-se um pouco complicado com as ilustrações, tomando-me bastante tempo e, neste momento, estou já "lançada" no meu romance e é sempre penoso dividirmo-nos entre dois amores...
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