18/10/2010

Memórias de Estalo - Capítulo IV

DA PORTA DE S. ROQUE AO ROSSIO

Vista assim do alto, sem maus cheiros que nos apoquentem, é uma cidade de sonho, iluminada a azul, branco e oiro, com suas desvairadas colinas a imitarem a curva ondeada das marés. Do outro lado do vale, a Mouraria e a Judiaria derramam pela encosta do Castelo a espuma do seu casario branco e cerrado, a fervilhar de vida e de gentes de estranhos trajos e costumes. Lisboa mede três mil e cem passos de comprido, mil e quinhentos de largo e de cerco em roda sete mil passos, sendo toda edificada em lugares altos e baixos, de tal feição que nunca a podemos ver toda duma parte. Do lado do mar tem vinte e duas portas e da parte de terra dezasseis, contando por todo o muro alrededor setenta e sete torres…

Ai, não queres trabalhar, meu tinhoso? Vilão forte, pé dormente, já lá dizia meu padre! Hei-de deixar-te uns dias em jejum, a ver se ficas mais ligeiro”. Desta vez a ponta do chicote morde-me as costelas, a mostrar que meu amo está prestes a perder as estribeiras e a prudência aconselha-me a obedecer: Quem quer fogo busque a lenha, porém eu já não tenho idade para guerras nem revoltas. Lanço-me num passo trigoso encosta abaixo, para o Rossio, embora com cautela, não vão as çapatas escorregar no esterco do caminho. Apesar das mil negras que andam pela cidade com suas canastras a alimpar as ruas, o lixo parece não ter fim, por serem tantas as gentes e as alimárias de transporte, bem como rebanhos de cabras e ovelhas, perros, gatos, porcos, patos e galinhas, todos fazendo seus feitos onde lhes dá a gana. Mea culpa… té eu já me tenho aliviado, embora a contra gosto!

Dos lados do monte de Santa Ana, vem o fedor do açougue duma praça onde se mata e esfola o gado que pasta na encosta e se corta a carniça para vender na cidade. Por aqui já é basto o mosquedo a atazanar homens e bestas, té parece a Rua de Mata Porcos! Pardeus, como as moscas me fazem raivar! Dou-me pressa d’avançar que o Rossio é lá ao fundo e já se ouvem os pregões de “Água fresca! Água fresquinha!” das negras aguadeiras que são mais de mil, vendendo água ao pote e quartas, por toda a cidade. Muitos outros pregões se soltam, a despertar Lisboa do seu sono, cantigas de mulheres cativas e forras a oferecer pelas ruas e às portas das casas, em panelas grandes e muito limpas, aletria, arroz doce e marmelada, frutas secas, cozidas ou frescas. Assim que os meninos as ouvem, se alevantam da cama chorando por dinheiro a seus padres e madres (menos mal que é isso por vezes seus almoços, que pobreza e alegria nunca dormem numa cama). Outras muitas vendem toda a sorte de viandas, peixe e marisco: cuscuz e chícharos , camarões, berbigões e caramujos , cousas tidas em muito apreço pelas gentes da cidade, que tudo compram, pese ieramá a carestia da vida.

Desemboco por fim no Rossio, passado um pouco já do galante Paço dos Estaus, mandado fazer pelo Infante D. Pedro, filho d’El-Rei D. João I, para dar pousada e gasalhado aos príncipes e embaixadores que vêm a Lisboa. Contra o Oriente, está a Igreja de Nossa Senhora da Escada e o Mosteiro de S. Domingos, logo seguido do sumptuoso Hospital de Todos-os-Santos, o nosso destino. O Rossio é um formigueiro de gente, por ser hoje terça-feira – dia da grande Feira da cidade – e só a muito custo rompemos por entre a multidão, seguindo para as arcadas do Hospital onde, depois de deixar a carga à porta das cozinhas, vou poder finalmente beber água do Chafariz, comer alguma cousita e descansar desta minha trabalhosa viagem.

Nota da autora: Ainda não descobriram quem é o narrador? Até agora só Maria Fernanda Pinto andou por perto... quase a chegar lá . Ninguém mais quer dar um palpite?

7 comentários:

Anónimo disse...

Parece-me ser este narrador bicho de quatro patas, jumento ou mulo, cavalo não, que não o carregaria assim seu amo.
Bom observador e narrador competente, está a dar-nos uma belíssima crónica de Lisboa quinhentista. Parabéns!


Mª José Guedes

DEANA BARROQUEIRO disse...

Obrigada, Maria José, pela participação e pelo elogio.
Peço-lhe desculpa, mas ainda não lhe vou dizer se acertou ou não na identidade do narrador. Ainda faltam três capítulos para a revelação...
Vamos manter este contacto, está bem?

DEANA BARROQUEIRO disse...

Ofélia das Avosices, anda por aí? Ainda não descobriu o narrador? Estou com saudades das suas mensagens!
Um beijo.

Ofélia disse...

Olá Deana
Venho cá todos os dias e estou deliciada com estas "memórias" e com as imagens e cheiros de Lisboa. Em relação à identidade do narrador, depois da Zé falar no burrico...
beijinhos
Ofélia
Ps: já fiz as broas de mel que ficaram uma delícia

DEANA BARROQUEIRO disse...

Obrigada, minha amiga! Já tinha saudades suas.
As broas são de facto uma delícia, uma preciosidade daquela região. Adoro comê-las quentes.
Um grande beijo.

Jorge Lourenço Goncalves disse...

Li, de um folego, os quatro episodios das "Memorias de Estalo" .
Imaginativo o estratagema de por um jumento ou um mulo a servir de narrador para nos dar a conhecer esta cidade de Lisboa, nas palavras da epoca!
Qualidade com a sua habitual chancela de autora de romances historicos. Parabens.
Vou estar atento aos proximos capitulos...

DEANA BARROQUEIRO disse...

Fico-lhe muito grata, Jorge Gonçalves, pelo seu comentário tão gentil. Espero poder fazer-lhe a vontade e pôr esta madrugada mais um capítulo. Torna-se um pouco complicado com as ilustrações, tomando-me bastante tempo e, neste momento, estou já "lançada" no meu romance e é sempre penoso dividirmo-nos entre dois amores...