23/01/2014

Miró e o último escândalo do BPN

 DN - Opinião - por Gabriela Canavilhas, deputada do Grupo Parlamentar do PS

A colecção de arte que foi do Banco Português de Negócios (BPN) e que incluiu um fundo constituído por 85 obras do pintor surrealista Joan Miró - um dos nomes maiores da História da Arte Ocidental - passou, finalmente, para a propriedade do Estado após concluído o processo de privatização do BPN, sendo actualmente, portanto, património público de todos os portugueses.

"Activos extravagantes", assim se referia Miguel Cadilhe à colecção de arte do banco a que presidiu no final de 2008, activos que pretendia transformar em "dinheiro fresco", tal como fez saber em entrevistas dadas à comunicação social. Mas o problema era, na altura e até muito recentemente, a efectiva titularidade/propriedade das obras de arte.
 
Só em novembro de 2011, com a venda do BPN ao Banco BIC, se determinou finalmente quais os activos que transitariam para a posse do Estado. E mesmo assim, o complicado processo de identificação dos bens, das imparidades, das dívidas, bem como da definição do que pertencia ao Grupo SLN/Galilei ou ao Grupo BPN, e ainda do apuramento da titularidade de 104 sociedades offshores dentro do perímetro do BPN, todas estas questões arrastaram o assunto da propriedade jurídica da coleção de arte até ao início de 2013.

Em março de 2012 dá-se a última transação de activos para as empresas públicas criadas para absorver os chamados "activos tóxicos" do BPN, entre elas a Parvalorem, que recebeu 17 quadros de Miró. As remanescentes 68 obras de Miró, registadas como propriedade de 4 offshores pertencentes à Marazion detida pela Galilei/SLN, passaram finalmente para o Estado em dezembro de 2012, após demoradas negociações.

Conclusão, a única herança positiva de todo este inclassificável dossier BPN - do qual o mínimo que se pode dizer é que o erário público acabou a custear os lucros privados de uns quantos cidadãos pertencentes ao inner circle de um certo poder - o único benefício dizia eu, foi ter caído do céu, nos braços do Estado, uma colecção de 85 obras de Joan Miró, algo que Portugal nunca imaginou algum dia poder almejar.

E que faz o Estado? Congratula-se com esta colecção e junta-a ao espólio dos museus portugueses, como o Museu do Chiado ou o Museu do Surrealismo em Famalicão? Transforma-a numa atracção turística de qualidade que nos aproxima de Nova Iorque, Paris, Madrid ou Barcelona com a oferta privilegiada de obras de Miró que ajudarão investigadores, curiosos, turistas, especialistas e público anónimo a compreender os caminhos da arte no século XX? Não. Decide vender em leilão internacional, antes sequer de mandatar a Direcção do Património Cultural para a inventariar e avaliar, e sem nunca a mostrar ao público português, num processo inédito de total opacidade que roça a clandestinidade deliberada.

Em Portugal não existe nenhum acervo de Miró ou de outro pintor deste período com magnitude e grandeza que se lhe compare, quer em valor artístico, quer em valor patrimonial. Infelizmente, da sua dupla dimensão material e imaterial, o governo apenas lhe reconhece o valor patrimonial, ignorando por completo o seu maior valor - aquele que perdura para além dos "mercados" e que continuará a perdurar muito depois de se ter apagado da memória e da História o rasto da passagem destes governantes (e dos seus ajudantes) pelo nosso triste país.

Se Portugal vender a colecção, será aberto um precedente nunca antes visto: obras de arte, públicas, serão vendidas por decisão de contabilistas tecnocratas, sem que tenha havido qualquer avaliação técnica e artística sobre o valor cultural que representam para o País! Nem em Detroit, cidade em bancarrota, as intenções do gestor da dívida pública de vender parte da coleção do Detroit Institute of Arts Museum foram bem-sucedidas - o procurador-geral do Estado do Michigan, Bill Schuette, proibiu a sua venda e o Senado começou a preparar legislação que dará garantias jurídicas a esta decisão.

Por cá, o secretário de Estado da Cultura exibe a sua irrelevância confirmando a falta de prioridade das artes neste governo e o primeiro-ministro, junto com o ex-administrador da Tecnoforma, actual presidente da Parvalorem, esquecem-se que, enquanto gestores da coisa pública, são meros "governantes de turno", não são donos, são apenas cuidadores temporários de algo que é dos portugueses de hoje e que deveria continuar a ser dos portugueses de amanhã.

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