21/01/2014

O caso da biblioteca que o conde inglês roubou ao bispo do Algarve


Matéria de Luís Miguel Queirós publicada no site do jornal Público:
Numa concorrida assembleia geral, a Associação Faro 1540 aprovou por unanimidade, no dia 17 de Dezembro, a decisão de pedir à Universidade de Oxford que devolva a importante colecção de incunábulos que pertenceu ao bispo do Algarve D. Fernando Martins Mascarenhas, saqueada do Paço Episcopal, em 1596, pelo aristocrata e corsário inglês Robert Devereux, 2.º conde de Essex.
Criada em 2009 e vocacionada para a defesa do ambiente e do património, a Faro 1540 (o nome evoca a data de elevação a cidade da actual capital algarvia) enviou já a sua petição à Universidade de Oxford – a cuja biblioteca, a Bodleian Library, Devereux doou os livros pilhados –, e também ao Governo britânico e ao Palácio de Buckingham, residência oficial da rainha em Londres.
Além de pedir a devolução da biblioteca do bispo – cerca de 90 volumes –, a associação solicita ainda o regresso do único exemplar conhecido daquela que será a mais antiga obra impressa em Portugal: uma versão hebraica do Pentateuco (compilação dos primeiros cinco livros da Bíblia) impressa em Faro, no ano de 1487, pelo tipógrafo judeu Samuel Gacon. O dito exemplar está hoje na British Library, a biblioteca nacional do Reino Unido, e Bruno Lage, presidente da associação farense, admite que o volume possa ter integrado o saque do conde de Essex, ainda que reconheça não existirem provas que confirmem essa hipótese. 
“Foi quase de certeza pilhado nessa época, mas não se pode afirmar que estava no espólio do bispo”, disse ao PÚBLICO o responsável da Faro 1540, observando que este exemplar do Pentateuco “tem um valor simbólico muito elevado para Faro, mas é apenas mais um livro para os ingleses”.
A petição, que a associação também fez chegar ao secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, à Câmara Municipal de Faro e ao actual bispo do Algarve, D. Manuel Neto Quintas, termina com um voto de confiança nas instituições inglesas: “Estamos certos de que as autoridades britânicas saberão reconhecer a justiça da nossa pretensão e que farão justiça a um país amigo (onde vigora entre os dois países a mais antiga aliança diplomática do mundo) e a uma cidade que se orgulha da sua história milenar e do seu contributo para a cultura portuguesa e europeia.”
Se se vier a provar que o optimismo da Faro 1540 foi precipitado e os livros continuarem onde têm estado ao longo dos últimos 400 anos, a petição, divulgada na imprensa local e nacional, terá servido pelo menos para chamar a atenção dos farenses para a história da sua cidade. “Depois de aparecerem as notícias, percebemos que muita gente, em Faro, desconhecia este episódio”, diz Bruno Lage.
As armas do bispo
Nem as autoridades portuguesas nem as inglesas responderam até agora à associação algarvia. A Secretaria de Estado da Cultura confirmou ao PÚBLICO a recepção do documento, mas adianta apenas que este será “oportunamente analisado”. Já a Universidade de Oxford não esclarece se recebeu a petição e limita-se a informar que “não fará, neste momento, qualquer declaração ou comentário”.
De resto, mesmo que considerasse o assunto passível de ponderação, não seria muito provável que pudesse desde já responder positivamente ao pedido da Faro 1540, uma vez que este não foi, por enquanto, assumido pelo Estado português, e não é sequer claro a que concreta instituição deveria a universidade entregar os livros, caso admitisse devolvê-los.
O PÚBLICO pediu também à Bodleian Library uma relação dos livros que pertenceram indubitavelmente à biblioteca do bispo D. Fernando Martins Mascarenhas, mas não recebeu ainda resposta a esta solicitação. Note-se que a petição não inventaria os títulos em causa, adiantando apenas que a colecção é “constituída por 65 títulos (num total de 91 volumes)”. Bruno Lage adianta ainda a informação de que 43 desses títulos seriam obras de carácter teológico – oito dos quais relativos a S. Tomás de Aquino – e 18 teriam natureza jurídica.
Num extenso artigo dedicado ao episódio do saque da biblioteca do bispo do Algarve, Peter Kingdon Booker, um inglês residente em Portugal que se tem dedicado ao estudo e divulgação da história algarvia, adianta que, além destes 65 títulos, que ostentam as armas do bispo gravadas a ouro, a biblioteca de Oxford possui ainda um outro livro e um manuscrito que apresentam dedicatórias a D. Fernando Martins Mascarenhas. Também estes foram doados por Essex ao seu amigo Thomas Bodley, que estava então a refundar a biblioteca da universidade inglesa, pelo que não há grandes dúvidas de que terão sido pilhados na mesma ocasião.
O texto de Booker, publicado no site da Algarve History Association, chama ainda a atenção para o facto de não ser certo que estes livros constituam a totalidade dos que Essex trouxe de Faro, quer porque o conde pode ter conservado alguns, quer porque a biblioteca do bispo pode não ter sido o único local da cidade onde Devereux pilhou livros.
E antes de atacar Faro, em Julho de 1596, Devereux já saqueara a cidade espanhola de Cádis, de onde igualmente trouxera alguns livros que depois ofereceu a Thomas Bodley. Booker precisa que a doação do aventureiro inglês à Bodleian Library totalizou 176 títulos, correspondentes a 215 volumes.
Se as armas do bispo garantem a proveniência das obras que as exibem, a ausência delas não assegura que não tenham sido igualmente pilhadas do Paço Episcopal. Algumas poderiam ter pertencido, sugere Bruno Lage, ao predecessor de D. Fernando Mascarenhas, o bispo D. Jerónimo Osório.
O ataque a Faro
Quando se dá o ataque do conde de Essex, Faro era cidade há pouco mais de meio século, por foral de D. João III, e só em 1577 recebera a sede do bispado algarvio, até então localizada em Silves. E Portugal estava submetido desde 1580 ao monarca castelhano, o que recomenda que se avalie este episódio no contexto do conflito entre Inglaterra e Espanha, que tivera um momento marcante em 1588 com a derrota da chamada Armada Invencível de Filipe II, e que iria prolongar-se pelos primeiros anos do século XVII.
O que não invalida o facto de Essex, como Devereux era conhecido em Inglaterra, ser mais um corsário, um aventureiro, do que propriamente um oficial devotado ao cumprimento escrupuloso das ordens da rainha. Espécie deplayboy quinhentista, foi durante muito tempo o favorito de Isabel I e, embora esta tivesse mais 34 anos do que ele, os historiadores acreditam que terá sido também seu amante.
Indisciplinado por natureza, a rainha tratava-o com indulgência, mas Essex irritou-a ao casar-se sem a sua bênção, e voltou a irritá-la quando assinou, sem autorização, uma trégua com o líder da sublevação irlandesa. A gota de água foi a tentativa de golpe de Estado que o conde liderou em 1601, tentando tomar Londres. O facto de em tempos lhe ter dado o seu coração, não impediu Isabel de lhe reclamar a cabeça: Robert Devereux foi a última pessoa a ser decapitada na torre de Londres.
E tendo em conta que só em 1600, um ano antes de perder literalmente a cabeça, doou a Thomas Bodley os livros que roubara no Algarve, foi uma sorte que a valiosa colecção do bispo acabasse na biblioteca de Oxford. Se Essex tivesse esperado um pouco mais, não se sabe que destino poderia ter tido o espólio de um aristocrata caído em desgraça e executado.
Juntamente com o conde de Nottingham, Devereux liderou as tropas que desembarcaram perto de Faro, na barra então chamada Ferrobilhas, no dia 23 de Julho de 1596. Os ingleses dirigiram-se à cidade, que encontraram mal defendida, já que boa parte da guarnição fora enviada a reforçar as defesas de Lagos. Depois de ter conseguido um valiosíssimo saque em Cádis, que atacara no início desse mesmo mês de Julho, Essex ficou deveras desapontado com a pouca riqueza que encontrou em Faro, e terá sido por isso que, irritado, mandou atear uma série de fogos, que destruíram igrejas e conventos e deixaram a cidade em muito mau estado.
Um “triste incidente que mancha a memória das boas relações que Portugal mantém com a Inglaterra desde a assinatura do Tratado de Windsor” em 1386, lê-se na petição enviada às instituições britânicas pela Faro 1540. E a própria Bodleian Library, num conjunto de documentos nos quais apresenta a sua colecção de incunábulos, refere o assalto a Faro como um “ataque corsário” (“buccaneering raid”). E diz expressamente que Essex “saqueou” (“looted”) a biblioteca do bispo.
Caso a Universidade de Oxford se venha a sentir obrigada a responder a esta petição, é improvável que tente defender a legitimidade das acções do conde de Essex à luz do conflito anglo-espanhol. Mas há vários argumentos que pode esgrimir em favor da conservação dos livros em Oxford, e o texto de Peter Kingdon Booker já adianta alguns deles.
Booker conta que conheceu em 2007 uma inglesa, a quem trata apenas pelo nome próprio Dorothy, que já então andava a tentar convencer a Bodleian Library a devolver os livros saqueados por Essex em Faro. Dorothy cedeu a Booker as cartas que recebeu de um responsável da biblioteca de Oxford, nas quais este defende que a devolução generalizada de peças como estas levaria a que as bibliotecas e museus em todo o mundo entrassem num período de tumulto.
Lembrando que os séculos XVI e XVII assistiram a grandes convulsões políticas, o bibliotecário, cujo nome Booker não cita, recorda que algumas das obras da biblioteca original de Oxford estão hoje em São Petersburgo ou em Roma. E conclui (na transcrição de Booker): “Se virmos estes volumes como parte de uma vasta colecção europeia, não pode ter importância em que zona da Europa estão, desde que sejam bem preservados, que a sua localização seja conhecida e que estejam disponíveis para consulta.” 
É claro que, estando assegurado que os livros disporiam de idênticas condições em Faro, se poderia observar que o mesmo argumento, na sua indiferença por comezinhas questões de propriedade, deveria levar os responsáveis pela Bodleian Library a considerar que não havia nenhum motivo importante para os manter em Oxford.
Embora a biblioteca não pareça ter disponível no seu site uma lista dos livros provenientes da colecção do bispo, a consulta dos catálogos de incunábulos permite ir encontrando alguns, como uma compilação de obras de Guilelmus Alvernus – ou seja, o teólogo e filósofo escolástico Guillaume d’Auvergne (c.1180-1249), bispo de Paris –, cuja “encadernação do século XVI” tem gravadas, reza a respectiva descrição, “as armas de Fernando Martins Mascarenhas, bispo de Faro, às quais foi sobreposto, em ambas as capas, o brasão da Bodleian Library”. 
Outro exemplo é o das Visiones de Cataldus Parisius Siculus, um humanista siciliano que viveu e ensinou em Portugal a partir dos finais do século XV. O livro foi impresso em Lisboa, em 1500, pelo impressor e tradutor Valentim Fernandes, natural da Morávia. Chegado a Portugal em 1495, Fernandes, editor do livro de Marco Polo e correspondente de Albrecht Dürer, foi uma das figuras mais importantes dos primórdios do livro impresso em Portugal.
Para lá da relevância da obra, este é um caso interessante por se tratar de um volume que não exibe as armas do bispo, mas que, mesmo assim, os próprios bibliotecários de Oxford admitem que possa ter-lhe pertencido. Os registos de doações indicam que a Bodleian terá recebido dois exemplares deste livro, mas apenas um chegou ao presente. E não se sabe se o que se conserva foi comprado com o auxílio de uma mecenas, Alice Chamberlain, ou se é “o exemplar de Fernando Martins Mascarenhas, bispo de Faro, doado por Robert Devereux”.
Publicado por Eduardo Coelho em Autores e Livros

1 comentário:

João Ribeiro disse...

Também se poderia pedir a devolução à França de todo o espólio pilhado e roubado a Portugal nas invasões francesas, principalmente na primeira. Não esqueçamos que o senhor Arthur Wellesley (novamente os ingleses amigos...) fez o favor de permitir aos franceses embarcarem de "armas e bagagens" para a sua pátria.